sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O pó que somos nós

Não viveremos mais que décadas.
Se pensarmos que décadas
É o que já vivemos
E que nossa vivência
Nada traz de relevante:
Pr'onde tange essa existência ausente?
Dentre rebeldias inóspitas
Que a ninguém aflige
E rodeia a imensidão do nada.
"Porque ele conhece a nossa estrutura,
ele se lembra do pó que somos nós."
(Sl 103, 14)


Marina Cangussu F. Salomão

Depois

"Agora o meu conhecimento é limitado,
mas depois conhecerei como sou conhecido"*
Hoje, finalmente compreendo
O famigerado devaneio
de meu percurso tão longo.
Sinto a sombra de Pandora
Rodear-me a alma
E posso ver o contorno
Daquilo que sempre busquei.
Sinto que o meu depois chegou.


Marina Cangussu F. Salomão

*1 Coríntios 13, 12

Longe de mim

Camille Monet on her Deathbed - Claude Monet

"Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte."*


Esperei-te incansavelmente
por tantas estradas
Desejei-te faminto,
amando a clareza de tua imagem
Abandonei o labirintoso 
caminho que me afastava
Esperei-te chorando
Agora vens tão sutil
Mas sua presença marca-me
Tu gelas as linhas que percorrem meu corpo
Acalenta a frequência de meu peito
E confesso que te rejeito
A solidão que tive
me impulsiona a afastar-te 
Sei que inevitavelmente me levas
mas saiba que ainda te amo
Longe de mim.


Marina Cangussu F. Salomão

*Mário Faustino

Minha carta de amor

The Walk. Lady with a Parasol - Monet
Aqui dentro há tanta mágoa,
Mas a vida chama-me à janela
Com carinho e impaciência
- antes ela fluía tão facilmente.
Falta-me a válvula de escape.
Saudades do fogo que nunca deixou de ser brasa,
Mas que, mesmo assim, morreu.
Ah, são tantas as lembranças que confesso:
Ao aproximar-me do quadrado de vidro
Sinto que canso da luta vã.
Dos sonhos perdidos: a procura de nós.
Hoje vivo pelo futuro. Mas pelo menos vivo.
Saudades de você, vida!
- antes ela fluía tão facilmente.


Marina Cangussu F. Salomão

Decidir

Se as decisões tomadas
mudam a rota:
fique estática vida
tenra e terrena.
O que se busca, 
ou deveria buscar, 
não é as sutilezas 
da futilidade capital,
mas da vida terrena
que nos encaminhe para o céu.


Se as decisões tomadas 
definem a rota:
indefina futuro 
vil e assustador.
O que se constrói
não é a base efêmera
do tempo não presente,
mas da vida metafísica
que nos encaminhe para o céu.


E se as minhas decisões 
são minhas.
Deixe que sejam.


Marina Cangussu F. Salomão

A difícil questão de viver

Minha primazia foi não
E teus sons ecoaram pela existência
O não consumiu-me as primícias


Essa palavra acompanhou-me 
E sonorizou-se para o futuro natural:
Para a normalidade marxista


Outra vez sobressaiu-se
E rejeitou o que me vinha
E qualquer mudança determinista


Mais velha retornou
Sem perder o dom de desapontamento
E afastou-me do teatro diário e contratual


No fim de tudo ela apareceu-me tão linda
Que não resisti aos seus encantos
E neguei a morte eterna


Mas pronunciá-la não é qualquer encenação
Requer forçar-se à dor do desgaste
Do onírico desejo.


Marina Cangussu F. Salomão