sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Brisa matutina

Possui o rosto inundado
apenas quando o vento 
lhe bate nos olhos.
Somente por reflexo


Mas quando sente seus efeitos
ou quando vê as mudanças do vento
Não é que não lhe afeta
Mas também não demonstra


Talvez foram muitos 
os ventos em seus olhos
e hoje, anestesiado
não consegue mover-lhes o vento


_ e este é apenas a brisa matutina.

Dicotomia

Penso viver em dicotomia
Não sou nem lá nem cá
Mas quantos mundos existem? 
A vivência afirma as diferenças
Mas não é sinônimo de divergências


Quantos indivíduos existem?
Não há dois mundos iguais
Não há indivíduos semelhantes
Então por que não aceitam 
Diferentes razões?


O humano nos engloba
Em parâmetros, determinantes
Mas não há de nos reprimir.
Portanto, não podemos ser tão livres assim.
_ e humanos somos todos nós.


Marina Cangussu F. Salomão

Ondas

A onda se desfaz na areia
Como um pêndulo, desnorteia:
e não há distinção
entre água e pó.


Ela modela, desestabiliza
Ora faz, ora enfraquece
Mas sua ressaca paralisa
qualquer forma de construção


Leva muito do que há na terra
constroe ilhas em outros limites
Porém traz muito do que há no mar
e arremata conchas de se catar


Mas em toda sua espuma
entre o rebuliço das águas
o oceano que lhe guarda
respira equilíbrio.


Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Isolução

Deveras o tempo fosse este
E as coisas não desabrochassem
Sim, deveras. Deverá.
Já que o mundo não muda
Já que a humanidade não aprende:
As guerras permanecem
As mortes também
A dor nunca acaba.


E dizem em evolução!


Marina Cangussu F. Salomão

domingo, 24 de outubro de 2010

Xeroftalmia

Os meus olhos estão secos
Não há dor que lhes inunde.
Secos como o mundo:
Sedentos, desesperançados.


Não vê que a verdade
Os agoniza, os desloca
Em busca da imaginação
Da vida de menina?


Neles não há nenhuma alegria
Porque é vulgar sorrir
Em meio aos famintos.
Pobres homens!


Nem agora escorre-me, 
na face desconhecida pelo sol, 
uma lágrima.


Marina Cangussu F. Salomão

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Envelhescência

Envelheci como toda maturidade envelhece
Ausência do que está além da fisiologia
_ e o sentimento da beleza perde intensidade.


Endureci como toda maturidade endurece:
Esqueci-me da pureza do rouge triste das tardes
Do acordecer dos pássaros.


A música abandonou-me a alma.


Marina Cangussu F. Salomão

Somewhere

Claude Monet
Doce amargura 
que em mim confunde
sonhos e tristezas.
Amargura que ensina 
a enxergar e a viver
Feliz! Conviver a ilusão e o real
Já que a minha essência é sonho
e a realidade é triste.
Espero o meu lugar, 
espero que ele exista.


Marina Cangussu F. Salomão

sábado, 16 de outubro de 2010

Para minha amada

Tu me trazes a lembrança 
de uma vida que morreu
Dá-me saudades deste tempo
tão barroco quanto eu

Tu me guardas os espíritos
de outros tempos na memória
Resplandeces o afeto
de um alferes com tanta glória

Vejo em ti as sinhazinhas
os escravos e ladrões
As dores da chibata
o ouro e os grilhões

Vejo em ti algo nascente
em ladeiras e castiçais
Só tu tanges santidade
e maldade nos postais

Suas igrejas me alegram
pena que não posso ficar
Não te entristeça minha amada
um dia em ti hei de morar.


Marina Cangussu F. Salomão

Adverbial


E quando todos os carros param repentinamente na deserta e anoitecida rua, nada ressoa a não ser as velhas e desgastadas presilhas da sandália. O solado por um fio de cola representa o quanto já andara.
Não é a brisa noturna que lhe seca o suor: talvez o sonho - o monstro de ilusões que criara. (...)
Deixara para trás tantas canelas arrouxeadas pela bola, eram apenas meninos na tentativa incerta de terem enganadamente descobertos seus desejados talentos ou quem sabe o desejo desesperado de se libertarem do futuro preconceituado do morro.
Por outro lado, exatamente do outro lado da rua, haviam aquelas meninas de meia-calça preta, recheadas de maquiagem. Longe flutuava a discussão sociológica, porque problemas mais urgentes eram corriqueiros: o embelezamento excessivo e desnecessário do que há de mais vã: a carne.
Carne que morre, apodrece, fede e se torna sal para, quem sabe uma árvore - que nem imagina que seu destino é sofrer cortes profundos no lenho, que a transforme em um toco no chão onde muitos irão tropeçar - trabalhe forçosamente para fazer-se frondosa afim de ampliar o sol em seus pigmentos.
(...) Nenhum homem a olha nem a deseja, ou está cansada demais para despender energia com desejos ínfimos que demonstram somente como do pó somos e demasiado voltaremos a ser. Ah! Não pode negar, é o único prazer que este mundo lhe pode oferecer. Mundo, tão devasso mundo.


Marina Cangussu F. Salomão

Soma dos quadrados (im)perfeitos

Quadrado simetricamente perfeito
Arestas linearmente erguidas
Aquele concreto, aquele ferro
Definidos os melhores do ano
Cores claras e calmas
Luzes bem dispostas
Janelas amplas e porta lateral
Temperatura devidamente controlada
Vidros antirreflexo e fiações escondidas.


Desejo um pequeno orifício
Para obter ar respirável
Oxigênio humano. Verdades.
Vida real.


Marina Cangussu F. Salomão

Sociedade

Jaz como a aurora profana
em seu cansaço e desespero
E neles retratas a inexistência
de caridade e compaixão


Vens destronar os merecidos reis
e ocupar-lhes a posição
com desleais ganâncias 
de suor alheio


Desmanchas a vida 
por gotas de ódio
E tira a comida
dos olhos vitrinados


Desnuda a vergonha
e sensibiliza a crença
Não tanges nem pensa
em santidade


És santa para os profanos
Mas quem há de dizê-los
se hereges são todos
pelo amor ou pelo apelo


Marina Cangussu F. Salomão

O amor

Leio sobre o Amor.
Mas o amor não existe:
o que nele reside
são interesses vulgares e febris.
Por eles que sinapses cardíacas
são rasgadas pelo sopro
das palavras sinceras e alossomais.
Por eles que se cria o medo
as paredes, as muralhas
intransponíveis do ser
Humano ou Essencial.


Marina Cangussu F. Salomão

Individualismo

Individualismo,
Rompe com quem te rege
com quem te ama.
Faça-se só e não durará
mate quem te cria.
Finde neste e este mundo ingrato
Esqueça a dor que provoca
e viva na ilusão do controle.
Mas saiba que a solidão limita seu poder.


Marina Cangussu F. Salomão

Meu tempo

Já não sinto a frequência vital
Por isso quebro o vaso que contem minha essência
Estou farta de ladeiras descidas
Estou cansada do método metódico da vida
Mas o tempo apenas mostra a chegada do detestável
Então tento me desprender do mundo:
E encontro somente minha parede torta
Tenho medo da carne porque ela morre
Evito os sentimentos porque eles findam


Marina Cangussu F. Salomão

Implanejável

Essa espera infinita pela perfeição
Atinge o estágio monótono da espera
Incansável.
E ver a vida imperfeita passar
Não permite agarrar dela
Nenhum momento que seja,
Até que tudo se torne intediante.
A espera pela perfeição se demora
E alcança o esquecimento
Que o perfeito não é planejável.
Afinal, a imperfeição da vida
A faz perfeita.
Porém, permanecemos estáticos
Nessa espera infindável
Pelos planos da perfeição.


Marina Cangussu F. Salomão

Eu, vespa

Poderia ser como a borboleta,
mas quebro o encanto 
escolho a vespa.
Sou esse inseto:
necessária e detestável
e não bela e encantadora
Então voo para a solidão
Solidão afável
que preenche quando há vazio.
E escolho ser só
Porque sou tão possessiva
que não me divido.
Sou tão má, que escondo minha maldade
E quando voo veem apenas meu trabalho
- a parte que permito que conheçam
E assim posso ser quem sou sempre
que estou comigo
e só.


Marina Cangussu F. Salomão

Humana, demasiadamente humana

Ah verdade humana,
és para mim motivo de gargalhada.
Vejo-te destruindo,
vejo-te prepotente.
Saiba que não existe,
não absoluta.


Ah verdade humana,
por que fazes isto:
deixar que o ser que te cria 
te desonre o nome.


Ah verdade humana,
não sejas tão inocente.


Marina Cangussu F. Salomão

"Conhece-te a ti mesmo"

Tenho medo do ser que me habita.
Apaguei o passado
Para não perceber que não sei
ao certo quem está aqui
Apenas uma máscara
de poder, beleza e coragem
Tento enxergar o percurso pretérito
mas as memórias foram canceladas
O que fecundou em mim tais ideologias?
Tal rancor perante o mundo?
Onde estão as memórias inconsoláveis
que outrora inundaram o horizonte?
A sensibilidade excessiva?
Assusto-me com o espelho
Com o estranho que ele reflete.


Marina Cangussu F. Salomão