quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Dor dos voantes

Se não pode me abraçar
Nem acolher-me da soltura
Então não diga palavras vãs
Nem reprima meu dom voante
Nem mesmo faça promessas inúteis
Dê-me apenas teu silêncio quieto
Que consola minha dor 
De sentir os pés no chão.

Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Sopro frouxo

Prefiro o silêncio das falas depois da porta
Ao murmúrio cálido das paredes frias

Mas prefiro continuar indo
Sem ninguém para ver-me

Navegando meu pequeno barco
Açoitando meus escravos

Traindo a mim mesma
Com minhas águas ingratas

Posso voltar para ti 
Esquecer a existência da vida

Posso virar a nau
Transbordar a saída

Mas estou retida num soluço que prendi¹

Marina Cangussu F. Salomão

¹Anna Alvim in Uma canoa furada circunavegando uma pequena ilha

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nosso voo

Eu sou essa pessoas, a quem o vento chama,¹
Em saltos profundos e pés leves
Mas que insistem em não voar

Mas meus olhos são guias
E as asas são os olhos mais altos e mais espertos
Que desfazem tua certeza e não voam sozinhas

Então me entoo em voo rasante
E sinto nas asas tuas mãos delicadas
Que me elevam e flutuam


Marina Cangussu F. Salomão

¹Cecília Meireles in Solombra

Partida

Meus pedaços se voltam para trás
Furtivos de mim e do meu caminho
Insistem em permanecer
Alojar-se em seu canto confortador
Que lhes aquece por entre braços e saltos
Mas os pés teimam em seguir
Ir pisando as sombras das poeiras
Deixando seu rastro
E fazendo seu castelo 
Com todo barro que lhes gruda
Mas não vão só, nem pisam apenas
Vão acompanhados, levitando
Na lembrança da voz e do amor
Assim vai leve abrindo o caminho
Que um dia guiará alguém


Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Devaneamento

Não sei se devaneio
Ou se o tempo aquietou-se aos meus pés
E calou toda incompreensão dos insensatos
Mas a tristeza que contemplo não deveria ocupar-me
Ou o amor que ostento não deveria existir
Para que a  posse seja liberta
Para voar sagaz por quaisquer becos
Já que hoje satisfiz-me com o que outrora calei
E não é preciso macular-me com punições
Se assim fosse meu coração seria mais solto 
E minha alma com menos culpa por me castigar
Por não ter sido ou por ter deixado ser
E deixaria só aos que querem ficar

Marina Cangussu F. Salomão

Os deuses

Estou desolada nesta terra
De deuses quadrados e cabisbaixos
Que me olham fofoqueiros
Desenhando com suas línguas
Novos retratos para minha face
E fazem-na grotesca e vil
Completada por suas invejas
E pelo que em mim é vago e vazio
Os mesmos deuses me enviam lembranças
Rodeando-me de passados
Que riem como fantasmas para me assustar
Ora loiros, ora castanhos
Atravessam o olhar que prezo
Nas instâncias de meu silêncio
E destroem todo o castelo
Que contruí para me proteger
E retiram meu príncipe
Com as palavras que engoliram em minha boca
As únicas que o fazem partir
E vejo-o salpicado na estrada
E todos os passados em suas costas
Eu fico da janela do que resta de meu sobrado
Mas um dia ele voltará sem passado, sem mácula
E a mim sorrirá primeiro
Será quando estarei em outros tempos
Outro arado, outro chão para meus pés.

Marina Cangussu F. Salomão

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Sóphos

O homem é a medida de todas as coisas, 
das coisas que são, enquanto são, 
das coisas que não são, enquanto não são.¹


E se perambular em barbante 
Acima de abismos altos
Desejando o que não há
Por toda travessia
Nem se alcança ao final

E se desejar a busca
Ou ao menos o seu contorno
E sua curta duração
Mesmo sabendo-a nula

Mas saber?
E caso seja outro passo?
Ou o outro paço?

Importa apenas 
O que enlaça e dissolve

O que duvida.


Marina Cangussu F. Salomão

¹Protágoras in A Verdade

Canção de amor de amigo

Se teus olhos brilhassem menos ao meu encontro
Saberia do fim que nos espera e espera a todos os que passam
Levam-nos sorrateiros para seus cantos sem romanceiros

Se tua boca não me pedisse tanto um beijo
Desesperançaria-me no desenlace de meus sonhos forasteiros
E não pediria tão sedenta a fuga por entre as matas

Óh doce natureza que me envolve
Proteja-me da desilusão daqueles olhos
Que laçam-me em nós
E nunca desprendem-me e nunca debato
Faço-o apenas nos humildes momentos
Que me entrego ao primeiro ato
Da casta encenação de meus tormentos
E jubilosos sentimentos segura naquela boca.

Mas se teus olhos brilhassem menos ao meu encontro
Subiria no mais alto verde que me protege
E faleceria de horror à alta soledade

E se tua boca não me pedisse tanto um beijo
Não sobreviveria à fogueira dos hereges
Pronta abaixo de meu despenhadeiro


Marina Cangussu F. Salomão

Sono lento

A face de meus sonhos
Desenhava-se sonolenta
No perigo do silente quarto.

E quanta contemplação
Nos meus poucos segundos!
Quanta perfeição
Nos contornos idealizados!

Revoluteando em vê-lo
No pequeno desespero de tocá-lo
Tocando toda umidade suada
Dos cabelos e de outros pelos
Derretendo na eterna maciez.

E era tanto e tão plácido o carinho,
O sutil delinear de dedos
Pela face até o queixo,
Deixando-os no aquecido
E esquecido sono contigo.

Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Boca

Minha boca que cantou
Tuas inúmeras perdas
No afã de elevar-se
Perplexa junto ao chão
Inundando-se de água e lama
Da chuva pouca que te gozava
E debochava dos incontáveis escorregões.

Cansada minha boca precoce gritou
Já seca e sangrando
Proclamou a desonra
A desesperança
Proclamou a derrota
Que suas pernas 
Continuaram cavando


A mesma boca cicatrizada que regozijou
Em jubileu de afeto e perdão
Ao escrutar os longíquos horizontes
E penetrar com os seus olhares
As supremas belezas¹
No vento gelado
Das alturas infinitas
De olhar eterno
Em que as contradições dos degraus
Elevaram suas pernas.

Marina Cangussu F. Salomão

¹Friedrich Nietzsche in Assim falou Zaratustra

Lenda

Era tão infinita aquela altura
Em vista de montanhas eternas e azuis
Que o canto surgia natural
Embalado pelo vento frio sussurrante
Que vagava entre os laços de uns dedos
E proclamava a nova história
Em outros ouvidos.

Marina Cangussu F. Salomão

Piedade

Para quem sofre, é uma alegria inebriante
desviar o olhar de seu sofrimento
e esquecer de si mesmo.¹
Não movia-lhe mais o coração
Para os rasgados e desamparados,
Não movia-se para sua cura e salvação.
Movimentava-se antes pelos próprios rastros
Abandonados outrora por seus sonhos.
Bons sonhos sem piedade ou compaixão,
Mas agitados em seus desejos
De giros entre si e no outro.
E agora sua alegria se alegrava
Sagaz e pouco desdenhosa,
Satisfeita de seus feitos.
Não que parara de sorrir aos que sofrem,
Mas dissera-lhes se não levantas não ouves
Nem vives o que trouxe a ti.

Marina Cangussu F. Salomão
¹Friedrich Nietzsche in Assim falou Zaratustra

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Pouco

O que é o visível
Diante o invisível
E todos os seus mistérios
Segredados nos poucos momentos
Em que é mais forte respirar que esperar.

Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Pintura

Não era capaz de perceber 
O que a esperava por detrás 
De todos aqueles brilhos 
Cintilantes de borboleta 
Que rodopiavam leves
Criando riscos imaturos pelo ar 
Em uma página transparente.
Incapaz de transpô-la 
E vê-la solta com menos brilho
Na sequência, menos flores.
Não queria rasgá-la nem perdê-la
_Antes toda aquela fantasia de mil cores
Que a perseguiria
Nos sonhos de todas as noites.
E talvez um dia real
Lá no fim do fundo preto.
Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Dança


Como explicar toda a loucura de meu corpo
Se entregando ao ritmo do vento
Em passos e saltos
De pés e pernas
Sem assombração
Dançando mãos e rostos
Irreprimíveis e livres
Soltos em sala grande e vazia
Marrom, madeira cheirando a cera
Lisa e escorregadia
Escorregando meu corpo
Por entre os cantos redondos
Sem limites para a alma
Livre, presa nas pernas
Longas e crescentes
Sem olhos para ver ou ser olhada
Tomando seu ritmo próprio
O som que quer ser
E se solta, completo
Louco e livre
Marina Cangussu F. Salomão

(volta) O som de minha oração


Volta a rede no mesmo balanço suave
No mesmo cheiro confortador
Nos mesmos traços e nos mesmos laços
Singela em declaração
Sincera em amor

Volta em seu balanço de palavras
Solta por entre os outros caminhos
Saltitando pelos tijolos
Atuando em um tempo
Moldado pelos olhos
E pelo o que ela diz

Volta a rede rodopiando
Meio sem imaginação
Volta sem voltas e rápida
Talvez em sorrisos
Volta solta
Como as letras da minha oração

Marina Cangussu F. Salomão

Respiração


E fez-se som
Na luz por entre as folhas
E no fundo todo azul,
Como o som daquele vento
Calmo e doce
Que segredava meus pensamentos
E me trazia todos
Na vagareza do tempo,
Meu derradeiro lugar de inspiração
Que deixava ser suave
O ar por entre as cordas
Que me permitiam a pulsação.
Marina Cangussu F. Salomão

A rede


A luz diretamente nos olhos
Pedia para se fecharem
E sentirem o calor que inundava
Junto ao aroma do balanço
De uns pés no chão.
E tudo tão confortador
Que me perguntava
Por que não para sempre
Entre aqueles braços
Como antes entre os pais.
Pois agora eu os trocava.                                   
Marina Cangussu F. Salomão

Sentimento vil e vã


Hoje não quero mais voltar ao começo
Pela primeira vez desisto da ideia de retorno
E pela última penso em seguir em frente

Hoje somente hoje

Marina Cangussu F. Salomão

Cientista


Não quero mais as palavras
Como descrição de meus fins
Nem quero o sonho
Como caminho a seguir
Quero antes a loucura
Da inexatidão
Transbordando como insana
Por entre os olhares e alguns sorrisos
E nem quero vê-los
Apenas senti-los e talvez tocá-los
Como cega por alguns passos
Saltitante e insegura
Ir indo pelas novas estradas
Amarelas como meu medo de sair.

Marina Cangussu F. Salomão