sexta-feira, 29 de abril de 2011

Herança

Deparo com meu corpo decrépito
Vazio de incentivo e cheio de interrogação
E se as mazelas do mundo se impõem
Apenas afirmo que não sei minha direção
Se pego nesta corda horrenda
É por medo da ausência de planos
E da assustadora ebulição de deveres.
O melhor seria mesmo findar toda contradição
São todos comigo: sem rumo e sem coragem
Cremos apenas na decúbito eterno de nossas almas
Em resposta à violência sofrida e ao amor gerado:
Terra. Terra. Profundo.
Eli, Eli, lama sabactâni?


Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Criado-mudo

Weeping Nude - Edvard Müch



Não sabia expressar palavra sequer
O silêncio doentio tagarelava em sua boca muda
E não expressava, não questionava, não pensava.
Sofria de falta de dúvidas, falta de planos.


Não imaginava o que desejar no instante agora
Muito menos o que esperar do futuro
E não planejava, não sonhava, não desejava.
Sofria de falta de ilusões, falta de inspiração.


Nunca entendeu... Apenas acomodou.


Marina Cangussu F. Salomão

Triste e vespa

Suas asas flamejantes e efêmeras
Dão lugar ao bater vespal,
E menos feia e inútil
É apenas larva podre
Que rasteja. Rasteja.
E lambe o chão pisoteado
Já que nem folhas restaram.
Rastejante relembra seu vão flerte
Nem consegue mais girar:
Enferrujada e chorona.
Adeus palavras, canções
Cantigas doces e rosas de flor!
Já pode-se ver o silêncio,
O erguer das paredes
Triste e vespa.


Marina Cangussu F. Salomão

Midas

De tudo que ela tocava nada era real
E ao permear lugares, imagens flutuantes
Tudo se desfazia perante seus passos
Tudo se transformava em névoa fugaz


Tudo que ela tocava se tornava fantasia
E ao buscar a base para sua emancipação
Se perdia entre sonhos, velejos e cortejos
E tudo transubstanciava-se


E ao vê-lo infante, jorrando razão
Ela obscurecia-se temendo tocá-lo
E olhando atroz e suspensa
Ousou fazê-lo ideário sempre.


Marina Cangussu F. Salomão

terça-feira, 19 de abril de 2011

Música silente

Tampe meus ouvidos
Com a mais sonora música
Que seja alta, ensurdecedora
Assim será silêncio o que dizes
Vazias as palavras que professa

Não quero saber o que virá
Quero apenas a fluidez divina nos dias
E que se desdobre sonhos
E se construa angústias
Enquanto se processa a vida

Deixe que a música silente
Permita que haja existência
Que haja memórias, que haja afeto
Por isso tampe meus ouvidos.


Marina Cangussu F. Salomão

Borboleta

L'Etoile - Edgar Degas


Era apenas uma menina
Que sentia com outros olhos
Os pensamentos eram todos poesia:
Suas asas cresciam e se abriam
No almejado voo circundante
Demonstrando destreza e ardor

Possuía uma memória gigante
Onde guardava os delicados momentos
E todos aqueles pensamentos alados.
Não desfazia-se de seu eu voante
E sentia o mundo presente em si
Era mais feliz consigo.

Vejo-a rodando... rodopiando.
Como uma borboleta.


Marina Cangussu F. Salomão

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Intemerato

Não sofria. Não desejava. Não esperava. 
Não odiava nem amava. Estava morto.¹

Não há excessos
O equilíbrio exacerbado
Não permite as dúvidas
A fé ou ceticismo
Os sonhos não se realizam
E nenhuma importância
Nenhum diferente existe.

Não há excessos
Não há drama
E nada se transborda de sentido
Relevância e menosprezo
Não há pulsação ou desespero
O controle, o direito
Tudo se faz correto.


Marina Cangussu F. Salomão

¹Érico Veríssimo in Um lugar ao sol

Sinergismo

És tão livre que me invejo de tua mobilidade
Me apaixono por ti e pelo teu descompasso
Admiro e me encanto por tua desarmonia teatral.


És livre e irradias liberdade
Perfaz meu controle com dissonâncias
E desejo quebrar todo o gesso que me reveste.


Permite que eu grite e quebre, fale e chore
Ensina-me a vagar por tuas ruas
Solta, leve, abolida, como ti.


Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Lúcido

Ecoa-se um grito longo e fino
Unido a um vento de sensações.
Fecha-se os olhos e sente, apenas.
Neste momento há capacidade
Para fazer-se ou mudar.

O vento murmurante diz
Ser livre em um mundo de ilusões
E delirando bailante no rodar enventado
Vive-se o vento. Vive-se a vida.
E o grito permanece longo e fino.


Marina Cangussu F. Salomão

terça-feira, 5 de abril de 2011

Delírio de Quimera




Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.¹

Da janela via-se multidões abarrotadas
Empurrando-se, esgueirando-se
Ao longe havia uma voz lembrando
Do sutil espaço onde encontro-me

Não havia reconhecimento ou familiaridade
Mas a voz dizia dos sonhos imaginários
Da Utopia flagelante de meus pensamentos
E o doce desejo retornou pela tarde

Outrora afirmaria o destino me incubir 
De transbordar leveza entre rios de aflição
Hoje o vento transfigurante que carrego
Apenas desarruma a breve calmaria dos dias

Penso se nego o cumprimento de meu encargo
E os dias se vão soltos no tempo de reflexão
Me perdi da realidade vaga pelos meus labirintosos
E se as lágrimas me percorrem é por medo de não retornar

Mas basta-me a desesperança das imagens
Para fugir pelo fluxo ilusionista da imaginação
Sei do dever de persistir naquilo que me foi confiado
Mas me redimo da ingratidão ao perambular anônima

E a multidão desordenada que me perdoe
Mas não posso amá-la ou renegá-la
Sou capaz apenas de ouvir a voz doce
De meus desejos Morusianos


Marina Cangussu F. Salomão

¹Cecília Meireles in Canção de Outono



segunda-feira, 4 de abril de 2011

Alma demente

A única coisa certa 
É que ele não nasceu com nenhum dom,
Apenas o de não ter uma perna.
Ele não movia fraternalmente,
Ele não produzia sequer substância,
Ele não tinha uma perna!

E tão coitado foi na infância
Que determinou-se seu futuro
Em ruas escuras e sujas,
Como sua alma demente,
A pedir dinheiro.
Pobre desafortunado fadado ao fracasso!

Não que não sonhasse: 
Predeterminaram-lhe a vida
A pedir esmola, a pedir futuro.
Não que não vivesse:
Os vidros nunca se abaixavam,
Os olhos sempre para o outro lado.


Marina Cangussu F. Salomão

sábado, 2 de abril de 2011

Allegro

Ela gira tão completa e louca,
Que pode-se ver sua alma elevada
Interagindo com outras tristes.
E vê-la rindo, rindo e gargalhando
Bailando ao som orquestral
Afeta até a mais dura alma inquieta.
E mesmo diante das forjadas palavras e segredos
Ela não se nega a rodopiar
E transbordar a lucidez de seu ínfimo espírito.

Marina Cangussu F. Salomão