quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Poesia Extensa

Olhei o mundo com meus olhos de fora
E vi que depois da chuva, no verão,
Faz um calor de céu azul e ar úmido
Gostoso de viver
De viver olhando os vários coloridos que o mundo tem.

E vi o som de tantos pássaros, cigarras, galos
Ouvi os sapos pularem para os becos,
Os gatos ronronarem seus carinhos.

Vi, na varanda, as roupas brancas brincarem de fantasmas com o vento.
Vi a voz da minha mãe falar de café na cozinha.
E ouvi o Mia Couto me dizer naquele livro:
Milagre é a vida não ter milagre.

Então entendi porque não consigo mais escrever poemas:
Porque a minha vida não é mais sopro sussurrado:
Ela tem estórias tanto quanto um cachorro livre:

A vida é poesia extensa.

Marina Cangussu F. Salomão

Meios e Entres

Sempre me disse das extremidades
E sim: eu sou assim.
Mas no mundo, eu não estou nos extremos
Eu estou nos Entres.

Não nos Meios, com as pessoas,
Nos grupos.

Estou nos entre grupos, entre pessoas.
Sendo sozinha no eu.

Os Entres são vazios.

As pessoas se infiltraram nos seus meios
E por ali ficaram.

Fácil ou não.

Já os que ficaram nos Entres
Ficaram sozinhos:
Porque nunca conseguiram se unir

Pois se o fizessem: seriam Meios
Não Entres.

Aí vamos sozinhos em nosso entres
Sabendo de nosso eu
Mas sem lugar no mundo

Somos originais, eu diria
(Afinal, nunca fui de tantas modéstias).

Mas não sem dor, 
Não sem erro,
Não sem arrepender

Como todos os outros.

Marina Cangussu F. Salomão

Agosto, Setembro, Outubro

Ouvi dizer que entre o céu e a terra há tempo para tudo
E antes de chegar na terra,
Na copa das árvores dessa cidade que habito,
Há tempo para tudo e todas as cores

Então, enquanto ando pensando no rodopiar das idas
Vejo-as materializarem-se em pétalas acima de mim:
São rosas, amarelas, vermelhas, alaranjadas e verdes

Tempos de ipê rosa, ipê amarelo, cerejeira, flamboyant, sibipiruna
Elas vão me dizendo em seu variegado de cores pacientes
O tempo de cada florescer

E apesar de carros, barulhos e pressas
Elas ficam calmas e serenas em seu tempo junto de sua história:
Se mais frio, se mais quente, se mais seco ou mais chuvoso
Se agosto ou se outubro.

Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Chapéu de camurça

Havia um senhor hoje, meio largado, meio jogado e completamente bêbado, entrando no supermercado. Estava bem vestido, mas mal apessoado.

Entrou dançando o corpo, não sei se pela música interna ou pelo álcool. Sorria para os que estavam na fila (lá estava eu).

Sorri de volta, porque achei interessante aquela cena: um bêbado bebum bem vestido em pleno Funcionários, em um supermercado de boa reputação.

Ele parou atrás de mim pegou qualquer coisa ao alcance da mão e disse: o que está escrito aí?

Ele lia a minha pele: "Agora és livre, se ainda recordas."

Parei, olhei em seus olhos e senti o cheiro de cigarro e álcool que vinha daquele rosto de sessenta e poucos anos com um chapéu de camurça de marca.

Depois de retribuir o olhar ele gargalhou discretamente. Virou para tras e repetiu a frase a outro cliente. Voltou-se para mim e disse: o presidente do Equador, um país da América do Sul, disse liberdade para tudo e para todos exceto para o mal e para os maus.

Gargalhando novamente continuou: ele morreu assassinado.

Nos enxergamos.

Fui chamada: próximo.
Despedi-me e pensei qual de nós era mais livre naquela ironia de vida: preso ao vício ou preso ao futuro.


Marina Cangussu F. Salomão


A janela do quarto beira-mar

A meia luz amarelada, 
Atravessando a greta da janela ao fugir da cortina, 
Ilumina minhas flores sem pétalas de meio de primavera
E me diz o quão aconchegante pode ser 
Deitar-se sola em uma tarde de chuva, 
Enquanto o mundo lá fora faz mil planos

Enquanto alguns viajam, outros trabalham 
E muitos preocupam-se com a própria imagem,
Eu me jogo na cama descabelada, 
Pensando no quão singelo esses momentos solitários me são:

Assim delicados e passivos, no seu deixar ir-se, 
Passando vagarosamente pelo infinito de sensações 
Que me acalma e me encontra

Me faz encontrar a mim mesma na essência de minhas cores 
E organização de meu quarto: 
Como meus livros na prateleira.

Então digo em pensamento: 
É chegada a solitária marina, 
Em suas miríades de pensamentos primaveris.


Marina Cangussu F. Salomão

Passagem

O tempo passa
Nas pessoas
Nas coisas
Nos lugares

Passa deixando cores
Brancos cinzas
E coloridos

Trocando nomes
Paredes 
Apelidos

Passa brilhando sorrisos
Amuando olhares
Mudando a vista

O tempo passa
Nas esquinas 
Nas casas
Nos amigos
Nos jovens adolescentes

Ele vem nas preocupações
Ele acalma futuros

O tempo vem
Manhoso
Calado

Brincando com histórias
Construindo memórias

Às vezes o tempo até volta

E minha avó diz:
Eu tenho muitas histórias para te contar, minha fia, são muitos anos.

Marina Cangussu F. Salomão

Consumação

Entrego-me a esse amor que me consome.
E consome, não em depravação,
Mas me acrescenta a cada pedaço que me leva.

O amor é assim para os amantes exacerbados
E nem ligo que seja excesso
Porque a vida nada tem além do dar-se

Então dou.
E adiciono.

Dou-me:
Cada segundo de minha vida à consumação
Entrego-me loucamente ao que me pedem.

E vivo cheia
De leveza.

Marina Cangussu F. Salomão

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Notas

Como alguém por um minuto sequer
Como alguém consciente da vida e do que ela quer
Como um ser humano, esperto, acordado e completo
Pode algum dia aceita-lo sem ser repleto?
A esse homem tão profundo e tão intenso
Como podem permitir que nele não aprofundassem
Não o desvendassem, nem o amassem?
Como podem nunca tê-lo descrito
Nunca tê-lo transcrito
E criptografado?

Marina Cangussu F. Salomão

Viagem: Porto Velho-Manaus

14-06-2017
17:00
O Redário

O barco finalmente deixou o porto após pelo menos 3 horas de atraso, se considerarmos todas as possibilidades de horários de saída ditas pelos tripulantes: 12h, 13h, 14h, 15h.
Por um momento acreditou-se que o horário seria 20h. Então talvez saímos com 3 horas de antecedência.
Assim que o barco partiu, as redes pesaram e se aquietaram no balançar lento do movimento da água. As pessoas, calmas agora, se calavam nos pensamentos de adeus ou ansiosos de chegada. E se esqueciam de todas as confusões daquela tarde de carregamento:
As faxineiras que não queriam salário do patrão que insistiam em pagá-las; o carregador paulistano que decidiu estudar; a mãe com filho pequeno que não pagou a passagem e foi expulsa do barco com pertences lançados à terra; ou mesmo o filho adulto que trouxe maçã para a mãe viúva que foi viajar; ou o gato sorrateiro, mais manso que cachorro, que entrou no barco e decidiu ir de Porto Velho a Manaus, como todos nós.
Muitas histórias nesse galpão colorido de redes penduradas, que agora reluzia com o reflexo da água do rio pondo o sol. Causando o mesmo efeito de pôr-nos em nosso lugar.

15-06-2017
7:00
Primeira Noite
Anoiteceu e alguns foram para a proa ver o céu sem lua, que só chega mais tarde.
E o infinito de estrelas era tão largo, perdido naquele rio cumprido de margens distantes, que no pretume da noite não se via nem o rastro das árvores florestadas.
E nunca vi tanta estrela - nem quando perdida na roça na época que não tínhamos rede elétrica.
Cruzeiro do Sul, Via Láctea, Escorpião, estrela-planeta no Zênite.
Preto. Tudo preto e as estrelas.
...
Dormimos nas redes atravessadas. Um frio de vento de água.
Enviesado: as redes com gentes em cima e o frio do equador.
Mas o amanhecer, que começa cedo, antes mesmo do sol, junto de cantos de pássaros que não sei, nada traz de viés.
É lindo: como divino, como privilégio.
É númen: só quem vê o sol nascendo redondo alaranjado por trás da floresta, que nos olhos é sombra, brilhando o espelho d'água manso, voando no céu cor de arco-íris algumas araras.. Só quem vê sabe.
E fica-se ali horas orando à vida. Pacificado. Admirado. Exaltado.
Até tocar o sino do pão da manhã.

16:00
Meditação
O vento da tarde de sol alto de nuvens, quando sentados na proa, leva até os pensamentos: que vêm e vão, vêm e vão. Sem se fixar. Sem nem mesmo falar em voz alta um com o outro.

18:00 
Maria de Lourdes
Hoje foi dia de conhecer a Maria de Lourdes, senhora da rede do lado da minha, parceira no vigiar das malas que ficam expostas jogadas no chão.
Cearense, 66 anos, mora em Porto Velho há quase 60 anos, sobe e desce esse rio sozinha pelo menos duas vezes ao ano para visitar a família em Manaus.
Vai sozinha com seu discurso anti-machismo, pro-erotismo e mulher independente não muito frequente em sua coorte.
Maria de Lourdes nasceu em família de senhor de engenho, na caatinga do Ceará, com fartura, muitos vassalos e muitos bois.
Entretanto, veio seca ano atrás de ano: os animais morrendo, o dinheiro sumindo, a riqueza do avô já não mantinha todas as coisas.
Seu pai e sua mãe, então, juntaram os quatro filhos (ela, a mais velha, completava 6 anos na época) e rumaram para Fortaleza, onde havia mais promessa.
Era por volta de 1957-58 e a seca da época não perdoava. A família se viu perdida: sem dinheiro para a volta, sem comunicação, sem ter para onde ir: moraram por seis meses debaixo de lona, para não ficar no sereno. Nessa época, Lourdinha completava 7 anos.
Até que três navios da Marinha, parece que encomendados pelo governo, levaram todas aquelas famílias para povoar o norte do país.
Foram sete dias de duração a primeira viagem de barco de Maria de Lourdes.
Foram para trabalhar no seringal, juntar dinheiro e talvez voltar para casa. Mas a mãe deles era bonita demais para viver no meio de cabras seringueiros, o pai morreria fácil brigando pela mulher.
Foi quando decidiram ficar em Rondônia e foram para uma colônia para produzir de tudo: abacaxi, macaxeira, girimum.
Então foi aí que cresceu a menina feliz e inocente, que aos 16 anos não conhecia o amor e por isso aceitou o marido que a mãe arranjou.
Casou-se Maria de Lourdes e aprendeu a amá-lo só depois, 
pois nos oito primeiros anos de casamento, quando tiveram os três filhos, seu Antônio só sabia gastar dinheiro com jogo e mulheres, e a Lourdes tinha que pedir permissão para tudo que fazia ou comprava.
Porém, de repente, seu Antônio se viu com mais de 20 mil reais de dívida e desesperado pediu à esposa que colocasse tudo em seu nome. Lourdes, esperta com a vida, aceitou com a condição da empresa de tecelagem estar em seu nome e o dinheiro em sua mão.
E foi assim que mantiveram a empresa, criaram os filhos e construíram casas e apartamentos para alugar.
Lourdes diz: nosso casamento só não acabou porque eu administrei junto. E, menina, mulher tem que ser esperta: a gente não precisa de homem não, construímos tudo sem eles. Então, se não querem ser parceiros, nem adianta: homem e mulher que trabalha fora chegam em casa e dividem o trabalho, não tem isso de homem ir deitar e mulher arrumar a casa. E tem mais, se os dois ganham seu salário, cada um tem sua conta no banco, pagam juntos e se sobrar cada um guarda seu dinheirinho.
Há poucos anos seu Antônio morreu, com os filhos já crescidos, Maria de Lourdes se aposentou e foi viajar, subindo e  descendo rio.

19:30
Consertar
Estávamos eu e o Lucas sentados na proa amando o céu, o rio, a viagem. Amando-nos em silêncio, admirando-nos e à vida.
Quando se aproximou p moço simpático que na noite anterior o Lucas ensinou a ver as constelações.
Veio conversando sobre sua mudança para Manaus: disse que veio do Acre, onde tinha uma fábrica de salgados, apartamentos para alugar e uma fazendo. Vivia bem com a esposa, fazendo dinheiro. Mas não tinha tempo de admirar toda aquela beleza da natureza de Deus, tão imensa e perfeita.
Então decidiram vender a terra, fechar a fábrica de 18 funcionários e seguir para Manaus, produzir e vender salgados, só os dois. E então poder viver, como disse: até ganhar dinheiro, mas também gastar.
Escorpião, como o chamamos agora, com seu ar contente perguntou de nós: se noivos ou casado (eles nunca dão opção de namorados).
Eu, pensando na maneira como falava de Deus o defini tradicional e resumi explicações e possíveis ofensas com: casados.
O Lucas sendo sincero: namorados, mas moramos juntos.
Respondemos ao mesmo tempo, por isso, ele olhou confuso e disse: vocês já estão juntos, só precisam se consertar.
Eu pensei: estamos errados?

16-06-2017
3:30
Cidades
O barco parou em Manicoré. Só soube os de sono leve que acordam com a luz fraca da noite do barco.
Alguns passageiros devem ter embarcado, não sei. Eu, ainda obnubilada, só pensava nas mochilas debaixo da rede, raspando na bunda, como forma de proteger.
Na cidade anterior, às 10 da noite, já todos dormiam, pois aqui tudo se apaga às 8 da noite, o barco não parou. Vieram de lancha até o mais próximo do primeiro andar e dali foram passando gentes por gentes, na aventura de quase cair na água escura e não mais se achar.
Mas entraram, penduraram suas redes e algumas talhas sumiram.
Não sei, não vi. só ouvi falar.

8:40
Vida Cotidiana
Completando o segundo dia de barco vejo que a vida aqui é uma Vida, à parte, mas completa.
O Argentino Artesão trabalha e aproveita para vender suas bolsas e pulseiras aos curiosos que ficam à sua volta.
As crianças brincam de pique-pega, caem, choram, rolam da rede, fazem cocô de porta aberta.
As senhoras oram todos os dias as rezas cantadas, unidas e animadas. Depois pegam a prioridade na fila da comida e comem dois/três pratos.
No bar do andar de cima toca Pablo, Juan, Maraísa, o brega que for, enquanto as faxineiras em sua hora de descanso seduzem os homens com seu dançar latino em troca de cerveja. Algumas já até formaram pares que beijam na boca.
Nas cordas de pendurar vieram as toalhas e agora as blusas, vestidos e bermudas lavados na pia do banheiro.
Os tripulantes já sabem de tudo de minha vida, mesmo ficando muda, e me cumprimentam como velhos amigos.

9:45
Cães Navegantes
O barco leva passageiros, mas também, e principalmente, carga: melancia, batata, banana, carro, peças variadas.
À hora do almoço - sim, o almoço é servido antes das 10, porém como o café-da-manhã é entre 5 e 6, às 10horas todos estamos com fome. Bem, à hora da primeira fila do almoço se formar, chegaram barcos para pegar mercadoria.
E em um deles duas cadelas: uma amarela (Loirinha) e uma rajada (Rajada).
Elas, mais do que toda a festa de tripulantes no move e remexe de peças e mercadorias, assistidos pelos famintos da fila, chamavam a atenção.
A cada cilindro carregado por 3 ou 4 homens fortes colocado no barco, elas atravessavam o "túnel" por cima e por baixo. Pulavam de barco em barco e fuçavam tudo. Sempre logo atrás do homem de costas carregando peso, prestes a tropeçar e cair. Verificavam cada mercadoria recebida.
E à hora de partir, ambas cadelas, sem prévio aviso, estavam a seus postos, de volta para casa.

17-06-2017
8:30
O Rio
Encontramos o Amazonas.
Não há descrição para esse momento de tamanha mágica: encontrar-se com a mãe da vida em seuas demonstrações de maior poder sutil e amoroso: o maior rio do mundo e toda sua intensidade.

15:00
Boca do Eva
O rio Amazonas é famoso por seus meandros. E cá estamos nós na Boca do Eva.
As margens se aproximam, bem como a floresta e o pasto (sim: pasto). 
Do barco ouve-se os pássaros ouriçados beliscando búfalos, enquanto a água invade a terra a ponto  de algumas árvores ver-se somente os galhos mais altos.
E de repente apresentam-se às vistas tantas casas com suas placas de bem-vindo com Bem-Vindo à Fazendo São Pedro, ou Iracema, ou qualquer outro nome.
Primeiro as portas e janelas fechadas, casas mais espaçadas, parece que abandonadas.
Depois ficam tão frequentes alteadas por palafitas que já se vê crianças, mulheres, homens, casais. Igreja, claro, para todo lado.
Tudo alagado e com vida.


Marina Cangussu F. Salomão

Tardes

Ao entardecer nessa cidadezinha escondida,
Descem todos os moradores felizes para a praça.
Os que acham que são maduros: jogam bola na areia e na quadra.
Os que aprenderam a andar: rodam e giram com suas bicicletas.
E os vividos fazem caminhadas em círculos com atenção.
Alguns poucos, como eu, apenas sentam nos bancos e admiram.

É gostoso o dia da vida: pessoas satisfeitas se acalmando
A grama feliz por ser usada
Os postes se acendendo à medida que o sol esfria
E no céu as nuvens fazem redemoinhos rosa azul e amarelo
Que trazem justamente a felicidade.

E tudo se tranquiliza e se delicia:
O paciente dessa manhã, ou a criança da tarde
Todos os meus pensamentos suavizam.

No céu começam a surgir as primeiras estrelas
E no chão elas piscam:
Os vaga-lumes brilhando de amor compartilhado
Junto de crianças que tentam desvendá-los.

Monte Negro - RO - BR
21/05/2017

Marina Cangussu F. Salomão

Caderno de notas

Tanta história vem de um caderno de notas
Que não sei se susto, saudade ou dor ao abri-lo
Mais parece um filme rápido de vários eus
Mais tenebroso que as próprias memórias
E também muito mais amor

Ah essa vida de poucos círculos e tantas voltas
Estranha aos que apetecem com repetição
Nunca quis eu ter parado na primeira curva
Porque sou antes uma mulher de malas curtas e bagagem grande
Levo é dentro de mim, sem muito cadeado
No máximo alguns cadernos.

Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Caminhada

Às vezes a vida parece uma caminhada ao meio-dia
Na rua principal dessas cidades pequenas que estão no interior,
Meio perdidas da memória e do louvor.

Uma árvore aqui e outra acolá
O sol alto queimando a pele.

E vai-se indo passo por passo nessa rua
Que a princípio parece tão longa e tão pouco larga.
Enquanto ela mostra quão viva pode ser na pacatisse:

Para o passante quando vem a sombra de uma árvore pequenina,
Se afolga o passo, lentifica a vista.
Mas quando só sol sobre o espinhaço,
Se apressa, acelera e incendeia as canelas.

Mas sempre: seja menino na bicicleta, seja senhora seguindo a missa
Sempre se chega no final.

Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Plenitude no amor

Hoje pela manhã vivi um momento de plenitude no amor
E acreditei ser importante descrevê-lo:


Era por volta das sete,
Aquele momento em que o dia amanhece
E os pássaros acordam,
Tão excitados e felizes,
Que o meu despertar é certo.
Meu e de meu amor.

E na frescura  da manhã, a rede nos chamou a balançar levemente
No ritmo das vibrações da vida.

Então no céu ainda branco do orvalho denso da noite
Havia um frio ameno, que so esfriava para permitir abraços
E enquando se desfazia a névoa,
Se coloria o olhar de araras verdes, em sua maioria.
Tão verdes quanto a copa das árvores que rodeavam o quintal da varanda    
E já não se sabia se verde de folha ou verde de pássaros​,
Porque até o movimentar era constante.
Só o som, que preferiu entrar pelos ouvidos e não pelos olhos,
Dava conta de somar as existências.

Era um encanto no céu
Melhor que qualquer paraíso.
Já aqui na terra os pequenos mosquitos que atentam os cachorros
Resolveram rodear nossa rede.
E mesmo eles eram bem vindos,
Magicamente exatos no balançar da cama.
Capaz que são atraídos pelo amor:
Amor do cão: incomparável incondicional inesgotável
E o amor da rede: dos dois pés nus 
Se acariciando lentamente como algo corriqueiro.

Ah natureza bendita. O que mais quero?

Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 13 de março de 2017

O amor. O rio. O amor

O amor que sinto por ele é tão gostoso
E tão completo, que ousaria dizer que
São como as águas de um rio longo e largo
Que desce tranquilo seguindo seu curso
Sem pressa, sem raiva, sem medo.

E por onde passa envolve com carinho e afeição
Deixando a margem calma e também o ar umido.

Acalma a vista,
Esfria o sol,
Molha o ar.

Não há empecilho que o transtorne. 
Tão forte que leva em seu caudaloso rumo as pedras, os galhos, as folhas,
As latas e garrafas jogadas por terceiros.
Lava.
Leva tudo...
Não por ter que aguentar
O rio sabe pouco de obrigações
Mas porque não é pouco o que o desequilibra e o desfaz.
Então não importa o que lhe cruza ou lhe penetra

Ele leva tudo consigo e lhe cabe muito.
Porque ele é como o amor:
Doce, suave, tranquilo e forte.
Destemeroso.

Marina Cangussu Fagundes Salomão 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Dicionário do Norte de Minas

Madrocê = amadurecer
Mi = milho
Isminuiu = diminuiu
Saudível = saudável
Abeira pra cima (não conseguimos traduzir ainda)
Otónti = anteontem
Arribar = levantar
Vexame = palpitação
Obrar ou disistir = defecar
Ataiar = encontrar, cercar
Dar lançadeira = vomitar
Córg = corrego, rio, riacho
Oitúb = outubro
Iscupir = cuspir
Sussar =  embalar, balançar, ninar
Lagrumação = lacrimejamento
Fregamar = inflamar

Sobre o fim do mundo

Ontem
Apareceu um arco-íris no céu
Dessa cidade sem cores

E poucos viram suas luzes
Porque tantos olhavam o chão
Ou olhavam os que passavam (por falar)

Lugar de raizes excessivas 
Diria.

Andaram nas ruas vazias
Sem olhar para cima
E sem sentir a pouca chuva.

Lugar de desejos sem horizontes
Pensei.

Ontem apareceu um arco-íris
Ou melhor, foram três no céu.
Mas ninguém viu.

Pois estavam ocupados
Pensando nas dores 
Que não querem saber.

Lugar de afetos incompletos
Concluí.

Tem pouco horizonte
E pouca amplitude
Os de corações carcomidos.

Pai Pedro - 21/02/2017

Marina Cangussu F. Salomão

Barcos da vida

Estávamos viajando, eu e ele. Em um barco. 
Vimos lugares lindos, descobrimos outros tantos. 
Aventuras, muitas aventuras.
Nós sempre juntos. Nós dois: e mais três pessoas, no princípio, que levamos em nosso barco até uma praia: a primeira já veio desde o começo e desceu rápido; a terceira entrou nesse momento, mas tambem desceu logo à frente; já o segundo veio desde o princípio conosco e se prolongou alguns meses sem saber quando descer, ate descobrir uma ilha agradavel onde ficar.
Depois que todos desceram tivemos nossos melhores momentos: ilhas, alto mar, praias maravilhosas. Sempre juntos. Só nós dois.
Porém, em algum momento que nao sei qual, nosso barco, que era simples, singelo, de madeira _ uma canoa na verdade_ começou a furar e entrar a agua do mar. 
Acho que esses furos foram o excesso de peso ao carregar tantas pessoas conosco. Pois ainda tiveram dentre eles o que esqueceu alguns objetos que julgo terem perfurado a madeira, quando estávamos deslumbrados com tudo o que víamos no caminho a dois.
Nos primeiros buracos eu sozinha consegui tampar. Enquanto ele, como de costume, ficou no remo, decidindo o rumo a tomar.
Entretanto foram surgindo cada vez mais buracos e sozinha eu ja não conseguia mais. Pedi que ele me ajudasse: deixe o remo um pouco, me ajude a manter o barco. Porém ele disse que nao podia, como podemos nos deixar à mercê da maré, simplesmente _ ele disse.
E surgiram mais buracos e a agua enchia o barco que ja nem andava mais, de tanta agua. Pedi para ele me ajudar. Porém ele, em uma atitude que penso ser desespero ou medo contidos, me afastou de todos os buracos que eu ainda conseguia tampar e disse para que eu deixasse o barco afundar e nós dois fôssemos juntos.
Eu, desesperada, nao queria a morte. Chorei. Insisti novamente que me ajudasse a salvar o barco. 
Ele se negou. 
Entao saltei no mar, me salvei. Enquanto o barco e ele se afundavam.
Então eu disse triste: vá barquinho, vá. Já que você consegue ir e eu não.

Marina Cangussu F. Salomão

Relatos

Cristiano chegou na escola no primeiro ano escolar: uma criança com os cabelos bem loiros e bem crespos. Como todas as outras, ele estava sedento por descobrir aquele mundo das letras que ainda não o pertencia.
Sentou-se no primeiro dia, no segundo, até o final do primeiro mes, mas haviam tabtas outras coisas em seu mundo para que compreendesse e a esvola nao o ensinava, que aquele mundo ali perdeu-lhe a graça. Depois de um mes, entao, raramente parava quieto: nem por suplica da professora.
Chamaram o pai: nao tinha. Chamaram a mae: só viajava. Veio a avó, com sua bolsa de colostomia mal cuidada, para a reunião com a professora, discutir o comportamento de Cristiano.
E a avó dizia: "esse menino é capeteado. A mãe dele, aquela bundona, vive levando droga por ai. Nao quer saber dos filhos, e eu ja nao aguento mais. Nao quero saber desse menino".
A escola em que Cristiano estudava beirava as tres principais favelas da cidade e acolhia todas as crianças carentes da regiao. As situacoes sociais ali eram precárias. Mas se fazia o que podia para alfabetiza-los. Quando possivel.
Cristiano nunca conseguiu ficar quieto na sala e prestar atencao. Nao conseguiu aprender a ler e apos dois anos de repetencia, ele sumiu da escola. Na epoca provavelmente com seus 9 ou 10 anos. Esperto o suficiente para levar coisas daqui para ali.
Aos 16, apareceu novamente por la com pressa de aprender a ler e a escrever, o minimo que fosse. O fez em 6 meses ou 1 ano, e na escola nao voltou mais.
Poucos anos depois se ouve entre os professores a noticia de que seu nome agora era Xisto e que ele estava preso por assassinato. A professora que o recebeu no primeiro dia de aula de sua vida ainda tinha um retrato com toda a turma e ele: o menino de olhos sedentos e cabelos claros, caracteristica que o destacava, pois naquelas fotos quase todos eram negros, exceto a professora.
Tempos depois passou no radio que ele havia fugido da cadeia em uma rebeliao dos presos e que agora ele era o " Dono do Morro do Cemitério": andava de carrao, muitas mulheres e naquele cidade do interior nao ficava muito tempo mais. Vivia viajando, como sua mae.
Teve seu tempo de gloria. Completou 25 anos, como poucos de seu tipo completavam.
E aos 31 anos foi morto com 19 tiros, na garagem do predio em que morava na capital do estado. O morro ja havia sido tomado por outro grupo. E agora os bandidos da capital, amigos do Xisto, iam todos para la vinga-lo e tomar o morro de novo.
Na cidade, a professora so ouvia as noticias de medo: os bandidos da capital vao invadir nossa cidade. Ninguem mais ficara seguro nas ruas. E no velorio do Xisto, nem os amigos da capital.

Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Rio

Pus o pé na água.

O dia estava quente e o ar muito seco, a pele torrava e rachava, o nariz não conseguia sentir o ar. Cansava. O calor cansa.
Então fugi _ eu gosto dessa palavra. Saí correndo com companhia, com um rumo mal arrumado. No meio do mato. No chão de terra.
Assim, sem hora para parar.
Fugimos.
Tinha algumas angustias comigo: umas coisas que disse sem dizer por completo. Eu estava muito tagarela esses dias. Precisava ir-me embora correndo, pedalando, sem fôlego, para me calar.
Então fui. Olhei ainda sem conseguir ver no princípio da trilha. Senti o vento pinicar o meu braço, ao invés de acariciar.
Estava rápido aquilo tudo: a velocidade do pneu, a velocidade do pensamento, a velocidade dos sentimentos.
Não me perguntei o que é que eu sentia. Não sei dizer: eu o amava.
Sim, aquele meu parceiro de estrada. 
Mas eu me doava tanto e pedia tanto que aquilo tudo me sufocava. Eu tentei. Juro que me esforcei: Segurei os meus amores transloucados de rotina, evitei afogá-lo em minha avalanche _ já afoguei outros antes, e a esse não quero machucar. E ele também não quer afogar: vive me empurrando para o lado, pedindo para respirar.
Ele me confunde. Eu me confundo. É isso. Com esse amor diferente que nunca senti (e olha que já tive muitos amores para sempre).
Fui, mesmo com ele comigo. Fomos.
A estrada de terra trepidando minha bicicleta sem amortecedor: quem sabe assim as coisas aqui dentro se reorganizam.
O ar continuava seco, a rota um pouco confusa e sem ter destino: bem igual o rumo de nosso desejo comum.
Fomos correndo, porque essa evasão desesperada é típica de nós dois separados e nós dois juntos.
Em sei lá que tempo, quando os pulmões ainda não estavam exaustos, o mato nos acalmou. Ele nos presenteou com a imagem mais linda para esse momento de angustia por estarmos juntos (duas almas livres).
Era simples: uma casa branca velha, carcomida, só de telhado, na beira de um rio que se alargava e dava algumas poucas voltas lindas no verde; o sol se punha; o vento fazia as árvores sorrirem; os pássaros jantavam os peixes da superfície. Vários tipos de formigas, besouros, pássaros, sapos e peixes. Vários sons silenciosos. Várias cores variegadas.
Vários nós se dissipando e desfazendo.
Meu pensamento se aquietou e eu quis dizer que ele podia ficar do meu lado, mesmo em nosso fim de dia. Indeterminado. Fique indeterminado.
Eu não disse. Eu só senti.
Eu pus o pé na água. E ele também.

Marina Cangussu F. Salomão

Id (iossincrático)

Ele tem muita certeza do meu amor
Quando chegou a porta estava escancarada
Sem chave, sem tramela, sem cadeado, sem proteção.
Chegou. entrou. se acomodou.
Nunca pediu licença para morar em meu ninho.
Largou todas as coisas por aqui
Bagunçou tudo.
Depois voltou bêbado e tonto
Pedindo para lavá-lo e deitá-lo
Derramou em mim um pouco de álcool.
Nunca pediu desculpas por desrespeitar o meu ninho.
Depois até teve vergonha e ficou mais quieto
Ajeitou algumas poucas coisas na prateleira
Disse que ia se organizar, que queria ficar
Tudo isso falando sozinho para o espelho

Agora já não sei mais: às vezes ele quer sair correndo
Me abandonando
Me deixando sozinha

Ele é instável demais.

Marina Cangussu F. Salomão

Das frutas do Cerrado

A menina tagarela
Come muita seriguela

E quando come tamarindo
Está sempre sorrindo

A tia chama:
Vem aqui comer pequi

Mas quando encontra a Lulu
Elas só comem umbu


Marina Cangussu F. Salomão

De tempos em tempos

Eu me tornei uma mulher suave com o tempo
Com a idade Com a vida
Eu me suavizei.

Descobri os caminhos de largar meus pesos sem pesares
Descobri como seguir com medo e como seguir com alguém
Eu aprendi que o afeto me afeta e me faz bem também

Eu fui me amolecendo, sendo aquecida, 
doando, recebendo

Eu perdoei a vida.
Eu aprendi a amar de fato.

Marina Cangussu F. Salomão

Nuvens

Da janela da casa se via, ao fundo, as montanhas se sobressaindo e limitando até onde se ia o olhar.
Junto a elas um céu encantado e com vida, que variegava em cores e intensidades, conforme o dia e as horas.
E às vezes rosa, amarelo, azul ou seco.
Poucas vezes com nuvens. 

Nunca se via nuvens naquele céu escaldado.

Mas naquela manhã, ele estava, no longe, com tantas nuvens querosas, que elas abraçavam toda a montanha. Com desejo, carinho e amor.
E de cá, nada se via de montanhas: só se via nuvens densas e graciosas.
E a barreira e o limitar de vistas de pedra: eram só nuvens ultrapassáveis, macias e úmidas.
Os obstáculos ficavam menores.


Marina Cangussu F. Salomão
Pai Pedro 01/2017

Da vida de Pai Pedro

A gente sabe bem pouco das coisas da vida
A gente sabe quase nada

E fica aí num tentar observar
Tentar absorver.

A gente aprende, não vou dizer que não aprende.
Mas a gente nunca sabe de nada.

A vida é ampla demais
As pessoas são profundas demais

Da vida a gente não sabe um terço.

Marina Cangussu F. Salomão

Árvores

As árvores eram todas caídas pelo vento naquela estrada beirando o rumo de Tapeirinha (ou seria Barreiro Branco?). Vento que vinha em Agosto, época em que já fracas de sol e seca nada faz das árvores suficientemente fortes para se manter.
Então caem, todas para o mesmo lado, só galhos cinzas, em um chão pálido.
Raízes para cima, sem qualquer esperança de vida.
Porém, quando chega Novembro e suas chuvas poucas e concentradas, algo de milagre ali ocorre. E o último filete de raiz que toca o chão já faz brotar os verdes claros mais lindos na copa caída.
Um filete de raiz que lhes sobra, faz um florescer maduro até Março.
Assim são as árvores de Tapeirinha.
Assim as pessoas:
Elas me chegam antigas em seus cinquenta anos, com roupas velhas, filhos doentes, dores de coração, dores de barriga presa, já não engolem a vida desde os 25 e não sabem ler o que lhes está à frente. O olhar sofrido da vida que amadureceu cedo demais (rápido demais).
Olho-as e mais parece que qualquer vento, nem precisa esperar Agosto, já as vai derrubar.
Mas de repente, como que por magia ou algum fascínio da terra, são elas que me acolhem e me sorriem, oferecem à mesa o que tiverem de seus poucos salários.
Elas brotam: verde claro, marrom tamarindo, vermelho seriguela madura, amarelo pequi.
Resistente essa terra.
Resiliência, me ensinaram.

Marina Cangussu F. Salomão
Pai Pedro - 19/01/2017