domingo, 26 de fevereiro de 2012

Inclinação

A ansiedade está consumindo-me,
O medo, a desesperança,
A perda de mim.
Os pensamentos acalmam-se
Somente quando as palavras 
Desenham vozes
Ou pintam papeis.
Ou quando você me mostra
Um presente sem qualquer antecedentes
E sem futuro para planejar.
- Mas não posso estar viva só em ti.


Marina Cangussu F. Salomão

Dois

Ainda que eu tivesse o conhecimento 
de todos os mistério e de toda a ciência; 
ainda que eu falasse todas as línguas, 
se eu não tivesse o amor, eu nada seria.

  Foi naquele momento em que pude deitar-me na cama, ainda leve, ainda borboleta, com as asas resguardadas para o descanso. Pronta para acalmar-me de novidades que chegavam como as gotas em tempestade. Depois de todas as festas e comemorações; depois de toda exaltação. Quando o público tão contente diante de meus raios brilhantes volta para casa, para sua própria vida.
  Depois de todo o meu vislumbre e da emoção de ter nas mãos tudo o que quis, e tê-lo da forma mais encantadora e rumorista. Tê-lo plenamente após tanta perda e tanta luta. Tanta renúncia. Quando tinha tudo o que por anos chorei escondida, escondendo de mim mesma a derrota.
  Quando tudo estava perfeito, cintilando em seus detalhes, brilhando qual vaga-lume em mata escura, e meu sorriso vinha até no sono sem bons sonhos.
  Que deitei-me para assimilar todas as apressadas boas gotas que me atingiram depois de tanta reza e tanta dança pela chuva. Quando recompuz o fôlego, que percebi que ainda não estava completo.
  O vazio insistia em perambular-me insosso.
  E sem a meta a ambicionar e sem todas as pessoas a encher-me de elogios e falas de boa eloquência; sem todo aquele terremoto de querer e ter, o silêncio parecia carcomer-me (desta vez lentamente) e o vão entre a porta fechada e a cama parecia se expandir, expandindo o quarto e sua solidez desvairada em nada.
  Eu tinha tudo, eu podia ser tudo. O sangue de minhas asas ainda ferventava da experiência de voo tão alto e longo, sem modéstia e sem limites. E sabia que ele poderia ser cada vez mais alto.
  Mas naquele instante de conquista, de ganhar para mim e ter o que era meu, com o mérito reluzindo alto meu nome; percebi que não havia sentido algum o que fizera até ali.
  Porque apesar de meus braços serem maiores e abraçarem um mundo, jurando-me mais e esbanjando possibilidades, ele se reduzia a mim. E a solidão por entre as paredes desfazia o brilho tão reluzente de meus troféus.
  E naquele momento pensei pela primeira vez que de nada adiantava ter tudo se não havia com quem dividir.
  Afinal, minha novidade já havia se transformado em cotidiano e as novas exigências se desenhavam batendo à janela insistentes. A rotina ia voltando com a necessidade de novos planos e a ambição avisava-me rouca de tanta fala, que havia muitos outros passos a dar e que o que tinha em mãos era pouco já que cabia entre meus cinco dedos.
  E só.
  Não haveria um tempo para sentir com emoção amenizada tudo o que havia, porque parar era o momento ideal de ver as perdas e sentir de fato suas faltas.
  Parar era o momento de perceber quantos outros  estavam lutando pelo espaço no mesmo degrau, e ver neles os pedaços ausentes que o espelho da ilusão impedia que visse. E perceber que esses pedaços deixados para trás faziam falta e impediam a integridade de um corpo, sem partes, a não ser as asas. Pois um voo tão alto quanto aquele não possibilitava pesos, por isso eram deixados na ganância de ser.
  E foi naquela passarela de pensamentos que percebi que ser assim tão alto como desejava requeriria-me saber voar sem abdicar-me da completude. Só assim seria realmente reverenciada, única e feliz.
  Então deveria equilibra-me entre as exigências da ambição e o desejo de voar plenamente e completo. Deveria, no espaço de minhas preocupações e dedicações, dedicar-me também àquilo que diferenciaria meu sorriso perante os vitoriosos. Pois meus lábios saberiam que depois de toda algazarra e todo esplendor, não ficariam sozinhos, nem livres. Mas seriam capazes de subir até onde o passo a dois permitisse. e eles permitiam mais: pois quando algum pé cansasse teria o outro e depois o outro e o outro.

Marina Cangussu F. Salomão
  

Você

Você, que consome os meus pensamentos
E distrai-me da vida presente
Dando-me um novo tato.
Você, que controla meu ser,
Permitindo-me senti-lo
Apenas quando está a invadir-me
E soletra quem sou.
Você, que obceca-me e controla,
Comanda minha imaginação,
Direciona-a para os escassos momentos
De ares completos em minhas mãos.
Você, que aterroriza-me quando chega
E me evapora quando está.


Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ponteiros descompassados

Causa-me uma inquietação
Um desespero em tocá-lo
Sabê-lo real em meus pensamentos
Acertar a veracidade
De sua existência em mim
Uma pressa em vê-lo
E sentir que me olha
Uma pressa dissonante
Deste tempo que deve ser meu:
Que assovia em calmas
Os cantos dos pássaros
Que desfilam sua exibição
No abrir das asas
Sem batê-las ou contorná-las
mas deixar o vento leve
Cortar-se por entre as penas
O mesmo vento que me corta
Quando tenho enlaçado
Em meus dedos seus dedos:
Uma brisa sem dono
Acalmando-me o tempo
Que ecloa lentamente
O eco de seus ponteiros.


Marina Cangussu F. Salomão

Escultor

Ela o amava constantemente
E desde a primeira estrela
No paraíso perdido 
Da doce infância
Pouco deixado no esquecimento
Desejava encontrá-lo
Como seu primeiro pedido
Seja lá como fosse 
E como se desenhava
E quando surgiu
Por entre palavras graciosas
E sorrisos ternos
Não descrevia dúvidas
Em toda doação e ensinamento
Que a acompanharia
E a esculpiria
Fazendo-a
Sua mais nobre obra.


Marina Cangussu F. Salomão

Pleno

As pequenas ondas
promovidas pelo vento
Vinham amenas de rapidez
Em sua direção
Bem como o vento
Soprando leve
Sussurrando em seu ouvido
E se sentia tão plena
No fim da tarde de sol
A água e o vento
Buscando-a
Acalentando-a docemente
Era a natureza (seria)
Lembrando-a de sua essência
Sem explicação ou motivo
Só essência
Só a plenitude do momento.


Marina Cangussu F. Salomão

Asas frágeis e quentes

Como uma borboleta
Na primeira rachadura do casulo,
A esperança e a ânsia
Se confundindo e retornando
Diante da liberdade eminente,
Com asas frágeis e fracas
Que se sentem na derradeira vez.
Ao sentir a primeira luz
Aquecer-lhes carinhosamente,
E não define se fica
Protegida e segura
Sem todos os novos afazeres,
Mas ainda dormir tranquila,
Ou se vai para o destino
Que sonhara outrora
Na inveja do voo
Com asas tão lindas e cobiçadas.
Assim era ao abrir os olhos pela manhã
E ver tua imagem doce
Com ar de menino dormir
E tuas mãos me abraçando,
Ignorantes e quentes,
Protegendo-me da ânsia da esperança
De sentir minhas asas frágeis
Arriscando abrir-se
Com vontade de bater.


Marina Cangussu F. Salomão

Atraso

O atraso nos compunha:
Há tanto eles disseram 
Repetidamente as mesmas frases.
E alertaram-nos,
No princípio de tudo,
Em outros séculos.
Porque os terrores foram iguais:
Mudaram os personagens,
As figuras e desenhos,
Mas não mudava a cena.
E eles disseram,
Desde o princípio,
E ainda tínhamos que dizer
E descobrir,
No atraso da ignorância
As falas repetidas
E acreditar no heroísmo
Há tanto exposto
Diante das desgraçadas cenas.


Marina Cangussu F. Salomão

O vão completo

A completude de nossos pedaços
Que regia o nosso único,
Trocados nos lados de cada um
Intercedidos apenas na fantasia.
E de olhares tão opostos
Construiu-se uma efígie maleável
Que ía e vinha nos passos
Da dança que fluía nos sons
Da expansão de nossas diferenças,
Tão claras e densas.
Pois escuro era somente
O segundo passo da dança,
Que pisava cada perna
Para o seu lado,
E na ida dos pés
Desmantelaria nosso gesso
E voltaríamos a duas partes,
Dois pedaços soltos e em vão.


Marina Cangussu F. Salomão

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Geometria incontida

Era a típica noite de verão 
Anunciando a chuva
Com um quente fresco pelo vento.
Daquelas que juntam pessoas mórbidas na rua
De tanto verem paredes
E verem vidas somente em telas
Não de quadro e tinta.
E agora: fora das formas geométricas 
Em visão sem muita simetria
Viam e reconheciam
Acordavam da mordaça do calor
Confinado em paredes.
E o vento que desmanchava-lhes os cabelos
Aproveita para desfazer
A certidão das coisas
Permitindo-se anunciar também
O próximo instante bagunçado
Que sussurrava e pronunciava o novo
Em matérias fixas desfeitas
E ventos fluidos aceitos.
Era que os planos eram novos
Como as promessas:
Que juradas nas carícias da ventania lenta
Anunciavam atitudes espelhadas 
E outras refletidas
Permitindo-os ver em espelho
A matéria incontida que os produzia.
 
E era por isso que no verão eles eram felizes.

Marina Cangussu F. Salomão

Nosso jovem amor

Pode dizer que me ama agora
Porque ainda somos jovens
Para acreditar que as coisas duram
E para crer que nossas pequenas asas
Um dia crescerão.
Então fujamos, mintamos,
Falemos as palavras fugitivas
Que desenrolam-se de nossas línguas.
Gritemos alto nossas vontades
Para voltar para casa chorando.
Pois ainda acreditamos
Que tudo pode durar
E que você pode me abraçar
Sem se importar com as cobras
Que se enrolam lentamente
Aos nossos pés e sobem pelas pernas.
E que podemos fazer tudo
Apesar das dores
Pois somos fortes juntos
Contra elas e contra eles.
E que estaremos juntos
Até o último instante
Em que estivermos juntos.
Porque ainda podemos acreditar
No amor e na vontade
Já que somos jovens
Já que temos tempo
E o futuro está distante.


Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O estrangeiro

Para Eduardo Cardoso A.
Ele chegou um tanto austero e obscuro
Em meu quarto só meu,
Aquele que seria meu esconderijo.
Usava um ulster preto
E sua lã grossa engrossava mais
O semblante fechado daquele estranho
Que enruguescia o cenho
Com seu pincenê de aro fino.
Num dos bolsos uma corrente
Barulhando um tique incomodante,
Esvaziando o silêncio,
Nas mãos trazia uma caixa
Igualmente misteriosa.
Causava um temor
Que gelava-me inteira
Sozinha naquele quadrado
Antes confortador e seguro
E agora invadido.
O estranho se aproximava
De minha figura acanhada
E reprimida em um canto,
Vinha lento, procurando fitar-me
Fundo e profundo nos olhos.
Depositou lentamente a caixa
Junto a meus pequenos e trêmulos pés.
Sorriu-me desajeitado
Com dentes amarelos e falhos, 
Meus coração acelerou-se no desespero
Sem conseguir ler aqueles gestos,
No medo escondi-me por entre as pernas.
E na espera de qualquer mal
Ouvi um bater de várias pequenas asas,
Voltando cuidadosamente o rosto
Vi diversas borboletas variegadas
Bailando soltos e colorindo as paredes:
Era uma fantasia cintilante,
Preenchendo aquele quarto vazio
Onde depositei minha alma.
E o estrangeiro agora com seu sorriso
Bastante feliz e sonoro
Parecia-me brilho e ilusão
E já poderia apossar-se
Da felicidade que me partia
E a ele cabia.


Marina Cangussu F. Salomão

Meu menino

O meu menino mais bobo
Aquele que no rodopio
De todas as notas
Me abrilhanta um sorriso de faíscas
Que desenham no ar
Um amor meio inocente e sagaz.


O meu menino mais lindo
Crente de todos os desejos imaginados
Que sonhando com o mundo nas mãos
Malabariza seus retalhos
Ele que sabe voar
E me presenteia com asas.


O meu menino mais amado
Porque amo suas ideias e seus traços
Seus coloridos nos tracejos dos passos
E sua música relembrando
Sonora e silente
Que existe o amor.


Marina Cangussu F. Salomão

Derrocada

Eles não conseguiam dominar o mundo
Sobre seus cavalos atléticos, vistosos e bem treinados
Eles não conseguiam dominar nem a si próprios
Apenas se perdiam na ilusão de seu domínio
E construíam enormes castelos e arenas
Com a poeira de sua derrota
Acreditando ser o ouro de seu império.


Marina Cangussu F. Salomão

O lugar

Onde eu estava para nunca estar com eles
E não saber sobre o que conversam
Nem participar daqueles temas
Que sempre foram banais e fúteis
Talvez a resposta estava nas falas magoadas
Que soltavam-me meio ingênuos e arrogantes:
Era absorta demais em mim mesma
E meus pensamentos e papeis
Estavam sempre a frente de qualquer
Conversa banal, atôa e sem fundamentos
Provável que também tinham razão
Na irritação de minhas dúvidas
Quando cuspiam-me algo que sabia voar de nascimento
Pois não precisava de justificativas para tanto
Eles tinham razão em serem deles
E serem soltos entre si,
Sem ponto, só exclamação
Sem precisar controlar-se em todo extremo
Deixando fluir as gargalhadas nas poucas graças
Eles tinham vazão: eles fluíam
E eu, eu não sei onde estava
Tinha vivido num sonho
E ainda o acalentava¹.


Marina Cangussu F. Salomão

¹Virginia Woolf in Reminiscências 

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Poucas curvas

Sua vida se expandia
Na monotonia do costume de outrora:
Traços, retas e poucas curvas
E as ações corretas de cada ponteiro
Automatizava expressões e falas
E já não se ouvia a imaginação
Perambular meio louca por entre si
Caindo de suas piruetas
E flutuando como boa esperança
Via-se apenas palavras secas
De olhar triste e cabisbaixo
Desfazer-se em retas
Para montar o mesmo desenho
Todos os dias
E em meio a retas e alguns muros
Era difícil contorná-los e entrar
Diluindo o espaço que seria para dois
Para flutuar em sonoros doces
Sem delimitá-los em traços
Mas nadá-los em ondas de mar
Tão enorme e espantoso
Como não poderia ser
A mesmice de seus dias.


Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Ordinário

Talvez não houve outro
Em minha pequena estória
Que compreendera, degustara
E admirara em melhor delicadeza
Com a mais perfeita minúcia
Aquilo que me preenchia
E enchia sem conseguir represar
E transbordava no balançar
Largo e gordo de minha direita bem criada.
Talvez ele fosse o único que apreciara
E vira essa minha tal completude
De única metade de um dois.
E talvez eu fosse a única
Que o visse assim exaltado
De olhinhos pequenos e esbugalhados
Em posição meio divina, meio infantil
E extraordinário.


Marina Cangussu F. Salomão

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Ad delirium

  Minhas mãos estavam geladas. O corpo todo, toda a minha pele exalavam um frio que percorria-me inteira, congelando as articulações, as expressões, os movimentos, congestionando todas as pequenas fábricas que não paravam sequer momento em mim (até agora!). Creio que também as unhas congelavam com aquela massa fria que inundava-me e se escorria, meus ossos, minhas veias e artérias... Os pelos já eriçados justificavam o corpo se contorcendo com a pouca energia que restava. Quem olhasse veria um organismo se reduzindo em volume cada vez mais, para manter-se junto, perto e quente.
  Os olhos teimaram em abrir-se e viram, como anunciado, sua decadência no negrume que se fizera: talvez um vulto ou outro, uma luz, não se sabe. Era tudo muito rápido e confuso e escuro. Como se os bastonetes fizessem greve e a pupila se aliasse. Mas não eram eles, também não sei quem era.
  Não. Eu não estava morrendo. Os meus lábios apontavam apenas uma perda de cor, combinando com minha pele cada vez mais branca _ que talvez seja a minha cor original sem o sol. Se fosse a morte meus lábios resolveriam-se para o roxo (era o que diziam os literatos), coloririam-se, tal maquiagem, contornando-me as linhas.
  Não... Não era a morte. Era apenas uma perda não sei de que que me veio de repente e retirava-me lentamente um pouco da consciência ou da racionalidade (não dava para distinguir), acentuando-me o instinto de manter-me, de segurar-me, de permanecer viva.
  E talvez tenha sido ele quem dera às minhas pernas uma semi-vida meio interrogativa para permitir a elas levar meu corpo àquela porta de madeira um pouco clara, talvez ipê, que se bateu às minhas costas, permitindo-me acompanhar a mim mesma em minha intimidade podre e fétida de fezes e vômito.
  E, provável, que o mesmo instinto manteve-me na ânsia de controlar-me calma e ciente para conseguir respirar nos poucos instantes que a boca esvaziava-se do líquido babento que escorria-lhe em jatos grossos e mal educados, intercalados com as tosses que aterrorizavam na presença de líquido excessivo que entrava pela laringe junto do ar. Sendo este o último, até então, que penetrara pela canalização bem feita de meu corpo, permitindo horrorizar-me com a falta do único gesto que dava-me a certeza de estar viva: a respiração.
  Foi ele, o instinto, que conseguiu dominar-me na esperança de restabelecer ou ao menos tranquilizar diante de minha cena decadente. Mas não sei se foi ele, ou quem realmente foi, ou se realmente ocorreu; na, talvez, última abertura de meus olhos, aquela mancha vermelho escura, que supus ser minha e ser meu sangue. Poderia pertencer ao chão ou ser qualquer outro líquido, até mesmo a sombra da cortina sintética que não reparei, ou da toalha ou uma sombra externa e indiferente a tudo. Mas acreditei ser meu e era meu, porque não havia sombra alguma ali, nem mancha ou sequer líquido derramado, tudo o que havia era eu e o que deveria pertencer-me ainda. Eu quem sujava tudo com meus ex-fluidos, que se esvaíam, abandonavam-me e deixavam-me o presente desesperado de ver meu fim... Sem dor, sem pena.


  Agora calmo. Tudo está calmo e paciente, sem a confusão de antes, como me disseram ser o céu de minha fé: escuto longe uma música leve e outras falas, talvez risos; o chão que me acolhe está com um aspecto macio e quente e seco, sem meus detritos e meus restos. Como se estivesse em casa, a aconchegante e corriqueira. E pode ser que a música seja as que minha mãe ouve e os latidos sejam dos cachorros do vizinho; a cama seja a minha, destacada entre as paredes rosa meigo, com detalhes de flores também muito suaves. Mas pode ser que seja o céu.
  Por isso não quero abrir os olhos, tenho medo do que estará na realidade avulsa a minha imaginação. Tenho medo de ser apenas um delírio estar em casa, e a consciência e o instinto já não restarem para me controlar. 
  D'eu ser apenas um corpo sem mais nada.


Marina Cangussu F. Salomão
  

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A explicação no epitáfio

  Talvez sejam rápidos demais para nos acompanhar. E nos deixa para trás, em sua velocidade desesperada para fazer-se e refazer.
  Talvez nos perdemos nessa velocidade. Ou talvez eu quem me perdi nos pensamentos, e fosse incapaz de perceber a perda.
  Ou talvez nos perdemos foi naquele tempo de pensamentos trabalhados em folhas, batendo em períodos longos com insistência.
  Afinal, era tanto mais a nos encher em nosso amadorismo de adultos, que não nos encontrávamos nos instantes de falas a sós. Porque elas rodeavam os mesmos temas políticos ou corriqueiros da economia, que iam e voltavam iguais com apenas novos enfeites e penteados.
  E esquecíamos dos temas que falavam do que era exclusivo a nós. Que agora ficavam a nos rodear meio vãos sem destaque, sem maquiagem devida, mas borrocados.
  Então, deixaram de importar nossos pequenos detalhes e nossas idiossincrasias comuns. Nossas besteiras de conviver juntos e ser um.
  A ausência do carinho já nem era percebida.
  E mal reconhecíamos nossos rostos em espelho especial, refletindo o cuidado necessário.
  Reconhecíamos apenas todos os deveres, as greves, as falas austeras e as buscas.
  E nos perdíamos entre os papeis. Perdíamos a nós mesmos e ao outro.
  Sem nos importar. Sem perceber aquela velocidade que machucava sem dor, por não permitir, em toda rapidez, o que vinha e o que se perdia.
  Sem perceber que os pensamentos se expandiam, e deveriam crescer, mas para o lado oposto.
  E a oposição agora não nos fazia bem.


Marina Cangussu F. Salomão

Geração

Era escassa toda aquela violência
Que promoviam no instinto da proteção.
Era sórdida e sã
A consciência com um vão
E temiam qualquer mostra,
Qualquer show de seus afazeres.
Tinha medo de seus decretos,
De suas próprias leis sem prazeres.


E eram livres e completamente soltos
Suas asas nasciam longas
Suas garras afiadas pouco.
Prontos para o voo e para as quedas
Abraçavam as poucas regras
Decretadas culpadas
Por tanta sorte no lixo
E por tão poucas histórias contadas.


Eram cínicos e sóbrios
Nas loucuras de seus entorpecentes
Apadrinhados pelos corpos já doentes.
Junto a eles valsavam as primeiras notas
De podridão fétida que lhes compunha.
Bailando infelizes na descoberta da alma demente
Choravam aos pobres santos clemente.


Eram eles loucos sãos
Que se divertiram até o vômito
E amavam aquele chão
Por isso beijavam com gosto e saliva
Os dejetos que ali deixaram
Para comemorar a liberdade
Que um dia conquistaram.


Marina Cangussu F. Salomão