domingo, 5 de fevereiro de 2012

Ad delirium

  Minhas mãos estavam geladas. O corpo todo, toda a minha pele exalavam um frio que percorria-me inteira, congelando as articulações, as expressões, os movimentos, congestionando todas as pequenas fábricas que não paravam sequer momento em mim (até agora!). Creio que também as unhas congelavam com aquela massa fria que inundava-me e se escorria, meus ossos, minhas veias e artérias... Os pelos já eriçados justificavam o corpo se contorcendo com a pouca energia que restava. Quem olhasse veria um organismo se reduzindo em volume cada vez mais, para manter-se junto, perto e quente.
  Os olhos teimaram em abrir-se e viram, como anunciado, sua decadência no negrume que se fizera: talvez um vulto ou outro, uma luz, não se sabe. Era tudo muito rápido e confuso e escuro. Como se os bastonetes fizessem greve e a pupila se aliasse. Mas não eram eles, também não sei quem era.
  Não. Eu não estava morrendo. Os meus lábios apontavam apenas uma perda de cor, combinando com minha pele cada vez mais branca _ que talvez seja a minha cor original sem o sol. Se fosse a morte meus lábios resolveriam-se para o roxo (era o que diziam os literatos), coloririam-se, tal maquiagem, contornando-me as linhas.
  Não... Não era a morte. Era apenas uma perda não sei de que que me veio de repente e retirava-me lentamente um pouco da consciência ou da racionalidade (não dava para distinguir), acentuando-me o instinto de manter-me, de segurar-me, de permanecer viva.
  E talvez tenha sido ele quem dera às minhas pernas uma semi-vida meio interrogativa para permitir a elas levar meu corpo àquela porta de madeira um pouco clara, talvez ipê, que se bateu às minhas costas, permitindo-me acompanhar a mim mesma em minha intimidade podre e fétida de fezes e vômito.
  E, provável, que o mesmo instinto manteve-me na ânsia de controlar-me calma e ciente para conseguir respirar nos poucos instantes que a boca esvaziava-se do líquido babento que escorria-lhe em jatos grossos e mal educados, intercalados com as tosses que aterrorizavam na presença de líquido excessivo que entrava pela laringe junto do ar. Sendo este o último, até então, que penetrara pela canalização bem feita de meu corpo, permitindo horrorizar-me com a falta do único gesto que dava-me a certeza de estar viva: a respiração.
  Foi ele, o instinto, que conseguiu dominar-me na esperança de restabelecer ou ao menos tranquilizar diante de minha cena decadente. Mas não sei se foi ele, ou quem realmente foi, ou se realmente ocorreu; na, talvez, última abertura de meus olhos, aquela mancha vermelho escura, que supus ser minha e ser meu sangue. Poderia pertencer ao chão ou ser qualquer outro líquido, até mesmo a sombra da cortina sintética que não reparei, ou da toalha ou uma sombra externa e indiferente a tudo. Mas acreditei ser meu e era meu, porque não havia sombra alguma ali, nem mancha ou sequer líquido derramado, tudo o que havia era eu e o que deveria pertencer-me ainda. Eu quem sujava tudo com meus ex-fluidos, que se esvaíam, abandonavam-me e deixavam-me o presente desesperado de ver meu fim... Sem dor, sem pena.


  Agora calmo. Tudo está calmo e paciente, sem a confusão de antes, como me disseram ser o céu de minha fé: escuto longe uma música leve e outras falas, talvez risos; o chão que me acolhe está com um aspecto macio e quente e seco, sem meus detritos e meus restos. Como se estivesse em casa, a aconchegante e corriqueira. E pode ser que a música seja as que minha mãe ouve e os latidos sejam dos cachorros do vizinho; a cama seja a minha, destacada entre as paredes rosa meigo, com detalhes de flores também muito suaves. Mas pode ser que seja o céu.
  Por isso não quero abrir os olhos, tenho medo do que estará na realidade avulsa a minha imaginação. Tenho medo de ser apenas um delírio estar em casa, e a consciência e o instinto já não restarem para me controlar. 
  D'eu ser apenas um corpo sem mais nada.


Marina Cangussu F. Salomão
  

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