domingo, 27 de maio de 2012

A menina que não passou

Choro pela menina que passou
Jovial, colegial, sorridente
A pequena que guardou suas mágoas
Entre as páginas de sua biblioteca
Para contente olhar o que não via
E magrilinha crescer nas frases
Subindo-as uma por uma
Sem pensar em descê-las.
E sem saber-se, cresceu.
Subiu onde queria e podia ainda mais:
E de saudade abriu os velhos livros
E de lá fugiram todas as lágrimas escondidas.
A mulher sentiu-as todas juntas
Infantilmente menina


(Então vi novamente a menina passar
Com todos os choros de antes
E senti em meu rosto as mesmas lágrimas)


Marina Cangussu F. Salomão

Finalmente, a bolha

Aprendi a olhar para cima
_Por mais que a cabeça me pese,
E desistir dos soltos concretos
Que de fantasmas assustavam meus sonhos
E me impediam de segurá-los nas mãos
Acariciando seu tato de vontade
E de pé pude ver-me em espelho
Irreconhecível diante da memória
Da criança dos doze anos,
E tão linda e flutuante
Decidi vagar nos vermelhos
Fazendo-os sangrar pela primeira vez
Já que agora tinha pernas mais altas
Que me permitiam ver de cima e forte
Como o desejo do amor de outros tempos.
Marina Cangussu F.  Salomão

Viva!

Viva a intensidade do nada
Junto ao silêncio de sons
Que calam-se em gritos
E penetram em concretos
Sólidos, tardios e sóbrios.
Onde a maldade estaria 
Acarrancada na boca de quem fala
E a dor impregnada
No coração de quem sente.
Viva!
O concreto um dia explode
Na reverberação do tempo
E o que antes guardado
Agora solto brinca nas águas
Que escorrem lentas dos olhos.
E nelas reflete a vida
E vê-se novamente.
Então, viva!


Marina Cangussu F. Salomão

Ares quentes

Hoje quero tua expiração forte me abafando em ares quentes
E o gosto de teu suor fervilhante me retirando o paladar
Te abraçar em um cobertor quente e proteger
Meus sonhos sentidos no tato de minha mão
Mas tudo tão longe
Vejo as imagens se afastando lentamente no caminho sem rumo 
Perdendo tua realidade em conchas que outrora me absorveram
E o novo desajeito não vem de tua presença consumidora 
Mas dos passos solitários que não me encostam serenos
E delicadamente nas mãos sinto o esvair de toque tão suave
Para ocupar o flamejar dos ventos quentes que de ti não proveem
E a realidade que me acaricia não é tão terna quanto a tua
É apenas a vida que me passa concreta em frente aos olhos


Marina Cangussu F. Salomão

Rota saliente

Vem vai volta
E sai


Mas nada se fixa na mão
Nada se deixa apertar
Na posse dos dedos
Quer voar
Na trilha do sonoro ir


Chegar calmo quando quer
E ficar


Marina Cangussu F. Salomão

Devanear

Já não me lembro de qualquer tempo, 
Nem tenho sequer memória 
Em que minha mão se afasta 
Pouco menos de segundo 
E não tenha ao alcance 
O deslize de seu contorno febril e feroz,
E não deseje um pouco mais.
Em que ela não sinta em delicado tato 
A maciez das curvas de teu queixo
Junto ao equilíbrio do pescoço.
Decifrando lentamente seus pelos superiores 
E por ali brinque de dançar 
Com rodopios lentos de uma só perna. 
Não me lembro dela não poder contrair-se meio costas, 
Massageando grosseiramente seu delineio 
E deslize com cautela e vigorosamente 
Até reflexos fortes e claros de devaneio.


Marina Cangussu F. Salomão

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A história das outras vidas

Um vazio contínuo
Em todos estes pensamentos
Bombardeando a porta
Trancada sete vezes
Por sete diferentes chaves
Em sete outras vidas


Soa o ruidoso baque
De tantas tentativas
De se libertarem
E gritam assustadoramente
Seus lamentos e tormentos
Em vozes de agonia


E de fora escuto tudo
No vazio das horas bobas
Indesejando a respiração
Ainda menos a força
Para libertá-los e permitir
Que povoem minha mente.


Marina Cangussu F. Salomão

A casa das flores

O silêncio azul das paredes
Transbordava com imensidão
O ninar lento da rede
No vento sereno como a cor.
Como a in tensidade da quietude verde
Em cada rufalhar da galhos,
E o barulhar calmo de água em água,
Unido ao canto das flautas de asas doces,
Que cantavam ao sol
Para carinhosamente aquecido ser
Nas manhãs frias de neblina.
E cabia-lhe tanto detalhe:
Tudo tão minuciosamente amado
Que o sentimento invadia a alma,
E junto a Sidarta,
Alcançava a plenitude de ser.
E era-se feliz!
Tão alegre como o salpicar
Das cores de tantas flores.


Marina Cangussu F. Salomão

domingo, 13 de maio de 2012

A queda

Ajoelhada diante do altar de vidro
Via-se a lágrima escorrer tímida
Junto dos pedidos há tanto os mesmos
E na sombra dos olhos fechados
Via suas migalhas se despedaçarem
E tudo ainda mais escuro
Abraçá-la sem cautela e licença
E vinha a mesma sensação de perda
O mesmo desfazer que o de sua estrutura
E não lhe restava nem os pés
Ou sequer tijolo que lhe desse esperança
Os pensamentos vagueavam 
Por entre ódio, medo e decisão
Foram tantas as conquistas perante as quedas
E ninguém nunca esteve lá
Apenas suas próprias pernas
Que agora se esvaíam em poeira
Com o mínimo sopro do vento


Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Filhotes

Enroscar em tuas pernas neste frio ameno de boa cama 
E nem ver o tempo fugir em nossos planos e besteiras doces,
Planejando tantos futuros.
Até o cobertor aquecer e nos esquecer que é dia.
E no fim te por em meus braços gingando boa canção 
Para dormi-lo nos sonhos nossos.
E depois ver a noite passando lenta e calma 
Em novo frio de abraços para senti-lo perto e meu
Marina Cangussu F. Salomão

Os vales e as valsas

Um cheiro quente abafado esfumaçado,
Onde quer que fosse o reconheceria
E voltariam todos os ladrilhos engavetados da memória
Dizer que estou em casa,
E flutuando naquele calor beje-marrom de barro, 
Madeira e cachaça,
Meio seco e pobre de vista,
Sentiria todo o colorido que o salpica e embeleza,
Fazendo-o único e certeiro em rendas, bordados e arte.
E seria a infância a guia pelos outros saltos:
Nunca abandonaria minha proteção aquecida em tons ocre
E a coloriria com a mesma espontaneidade e fé de meu povo
Confundindo os outros,
Que nunca entenderiam minha cor dourada 
Por trás dos olhos verdes
Tampouco saberiam a riqueza dos nossos espaços.


Marina Cangussu F. Salomão

(des)Formação

Cai a lágrima da moça ao lado, 
Assim como chega a minha saudade em solo verde
Vendo a rodagem padecer-se sobre as rodas rápidas e ligeiras
E ninguém estava bem
(Ninguém é completo)
Da janela vejo a todos faltar um pedaço
Incompletos em doce ou amargo.
Faltava no moço jovem que me olhava  
Com doçura humana e rosto de duende,
Faltava nos brancos que colorem os cabelos,
Também no aleijado e no de duas pernas
Que tropeçam pela mesma rua,
Faltava no coração.
Faltava tudo em todos:
É que todo mundo é um pouco mal formado.


Marina Cangussu F. Salomão

Desacuando

A cabeça enrola-se nesses traços mal formados 
E pouco despedaçados
E o pensamento força-se a desfazer os tracejos 
E despudorar os intactos castelos de ondas e palavras
Desvirginando em sequencias a arte acuada 
E liberando-a das membranas que a conduzia à quietude


Marina Cangussu F. Salomão

Desconjuntura

Ela era livre e só
Em pés desconjuntados e forçosos
Muitos foram os amores
Que seguiram seus caminhos
Abandonando os maus trejeitos
E se encontraram em outros chãos
E ela ficou quieta
Com medo de andar sem pernas
E com seus pés descomunais


Marina Cangussu F. Salomão

Pés baços

[...] cantais como os pássaros que de manhã recebem alimento, 
Mas há pássaros famintos, que não podem cantar¹
Nasceram da Palavra e andam soltos
Sem mala, roupa, sala, nem nada
Andam sentados nos cantos
Com pés de cinzas do inferno de onde veem
Caminham dias seus olhos seguindo passos
E veem tudo, menos seus próprios laços
Dissolvidos em qualquer superfície
Bem antes de nascerem séquitos

Se amontoam perdidos, salpicados entre os cantos
E não cantam sequer sinfonia ruidosa
Ressoam somente seus gemidos tantos
E voam pelas manhãs à espera de argumentos
Sem ouvirem nada na surdez contínua
Ou na mudez perplexa e rápida dos passarinhos
Que apenas sentem o aroma das rosas brancas
E não o fétido aroma da carne dos perdidos

Marina Cangussu F. Salomão
¹Cecília Meireles in Elegia sobre a morte de Gandhi

A pequena bailarina



Para Luísa Cangussu
Ela deveria ter nascido bailarina
Estava em todos os detalhes deixados
Nos traços de sua formação
Entre fineza e ar complacente
Deveria ter nascido em saltos delicados
Com harmonia de encontros e soltos
Para entregar a raiva à encenação
E o lindo sorriso aos tantos aplausos
Movimentar todos os músculos
Em fina contração delineada
Deveria ser livre no vento
O mais terno que lhe percorria a face
E envolvia todo o corpo no tour
Deveria sê-lo na leveza da estrutura
E vagar com os mesmos passos
Com pés em ponta no chão
Quase soltos e pouco fixos
Deveria
Marina Cangussu F. Salomão

O tempo das horas


Sentia angústia pelo tempo desperdiçado
Nesse colar de rotinas minúsculas¹
De vai-e-vem sem ir a lugar algum
Rodando lentamente à espera de tontear-se
E sentir a alteração autônoma de seu corpo
Para se sentir mais autêntico e si
Mas ao final de tantas voltas
Nada era além de um corpo (corpo apenas)
Sem a alma para girar no espaço
E transcorrer seus ilimites
Pois o corpo gritava mais alto
Na exaustão da tentação do todo
E ilimitada era somente a carga que lhe pendia
No descorrer de tantas horas
Sem medidas no relógio
Pois o tempo não se via, só a dor por todo o corpo
Em cansaço de mesmice de dias sem exatidão.
Marina Cangussu F. Salomão
¹Isabel Allende – O Plano Infinito

Andarilho


Lá o tempo dita-me anos
Em clarência de afeto
Aqui professa-me segundo,
Roubando-me o tempo de ver
E em cegueira
Restam-me apenas as cenas de antes
À espera da esperança de voltar
Para o delineio sem espaço
De todo o afeto que transbordava
Afinal, é bom abrir os olhos
Em paredes conhecidas
(e aquecidas)
Marina Cangussu F. Salomão

Morre o solo sonho


  Talvez eu não queira voltar lá e ver todos os destroços, toda a ruína. Perdidos.
  No tempo achei que valeria perdê-los, por um futuro promissor: como dizia a voz de todas as gentes.
  Hoje, no futuro, restou-me apenas um bolo enorme tampando minha garganta, impedindo-me de tocar o alívio. Porque o tempo já passou e não posso, apesar da imansa vontade, correr desesperado em lágrimas para o colo de minha mãe com o joelho puro sangue.
  Não posso, porque minhas quedas agora são outras, e não existe nenhuma bicicleta, e o encontro de meu rosto ao chão ninguém vê. E se percebem, dizem com desdém apenas que todo mundo aguenta.
  Talvez meu pai estivesse certo em minha adolescência quando batia as portas, justificando que o mesmo todo mundo ia à festa, e ele, com toda calma, argumentava que eu não era todo mundo.
  Sim. Hoje vejo que não sou. Não tolero o quanto eles toleram. Ou pelo menos não consigo fazê-lo em meio a entorpecentes e outras drogas, remédios, gritos e explosões.
  Não consigo. Só consigo chorar. E é fato que me despedaço na cama, abafando a dor das lágrimas no travesseiro.
  Mas talvez seja isso a maturidade que não enxergo: correr, como antes para o colo materno, mas dessa vez para as outras saídas, típicas de adulto.

  E engraçado como as crianças têm amadurecido tão rápido - e brincam tão pouco - nem se lambuzam de tinta, só de cola (e esta não é a escolar).
  Ah! Confesso: a vida é inimiga de minha arte. Pelo menos esta vida!

Marina Cangussu F. Salomão

Fome dos olhos inquietos


Há quanto tempo
Meus olhos não cessam
Seu vaguear nada ameno
Para ater-se a um só momento?
Não param para vê-lo
Passar desfilando calmo
Apresentando seus divertimentos.
Então afogam-se
No desespero de tantas cenas
Que engolem com tanto fulgor
E sem pudor.

Marina Cangussu F. Salomão

Diagnóstico



  Você se concentra demasiado nos horrores.
  Era o que dizia meu pensamento, sentado a minha frente em forma de gente. E eu me respondia que era desde quando me mudei para aquela terra de céu curto e chão que prende o rosto e o espírito.
  Mas eu mentia, para fugir do diagnóstico.
  Era assim desde quando minha memória falha e a única matéria que guardou foi aquela melancolia nos fins dos dias, misturada com a saudade de um dia só.
  Nasci melancólica e depois.
  Nasci com defeitos.
  E ninguém viu nas tosses secas repetidas e sem motivo, nos choros incoerentes da birra da infância entre brincadeiras com bonecas apenas, nos pedidos de cuidado pouco arraigados, nos incômodos na garganta me sufocando, nos tiques milhares e diversos, e tampouco viram nos meus pensamentos, que eu era só, desde que nasci.
  E agora ninguém vê nos medos repentinos nem nas ideias sem controle.
  Aprendi-me com o tempo e descobri como burlar minha própria razão.
  E para ela sou sã. Para eles sou normal. Apesar do estresse, do excesso de chocolate, da revirada dos olhos, dos prantos escondidos, do medo indefinido: normal. Independente da fuga e da falsidade: de justificar nos livros e ser tão livre.

  Só não sou livre da dor, que sinto ao confessar tudo isso.


Marina Cangussu Fagundes Salomão

Desolação em terra fértil



Corro para meu exílio para sucumbir-me ao cansaço
E perco a luta nos traços insones da solidão dos dias cheios.
E invado-me a mim mesma, encontro as partes soltas e só.
Lá o tempo some por entre as mãos sem ater-se a vista.
Aqui consome-me a existência,
E por mais que alargue as pupilas,
Mais minha duvida aumento¹
E descubro nela meu alento.

Marina Cangussu F. Salomão
¹ Cecília Meireles - Marcha

Acrobática


Vou gritar para que apenas
Os surdos escutem meu sussurro
E pintá-los em arte de dança arredia
De próprio ritmo.
Mostrar-lhes cada passo acrobático
De pernas e cabeça para cima.
Pois o que se vê é excesso de pés
No chão e também vistas.
Marina Cangussu F. Salomão

A estrela cadente do dia


Era cadente aquela estrela
Que rasgava o céu do dia
E anunciava o novo pedido.

E em sua linha de tesoura rodopiava
Todo o azul claro na esperança de vê-la
E fazer conforme pronunciava.

Sua cadência ia de encontro ao alto
Para purificar a vista de sua fala
E para tornar pobre todo o antes.

Porque agora havia a nova notícia
Que proclamava em seu zumbido de corta céu
E escutariam todos os terrenos de ouvidos.

Marina Cangussu F. Salomão

terça-feira, 1 de maio de 2012

Os cachorros


Ia o homem com a enxada na mão
A seus pés seguiam dois, sempre na proteção

Podiam seguir nas pequenas ruas
Mas preferiam seguir o cenário das árvores nuas

E seguiam o percurso natural
Na fantasia do tempo que lhes era real

Os fiéis escudeiros nunca abandonavam
Fosse cerrando madeira ou quando caçavam

Ia juntos tirar leite e cortar cana
Desejando boa sombra e a comida da Dona Ana

Contavam causos, reclamavam da vida
Uns ouviam e o outro clama a Compadecida

Adoravam o mesmo tempo no capinzal
Quando o mato subia verde e pulavam no aguaçal

Os pequenos giravam mundos de pata em pata
E ensinavam ao homem a beleza simples e grata

A noite, quando já era mais tarde
Recostavam em seus cantos, longe da verdade

E os sonhos se coincidiam
Que os outros dias igualzinhos íam.

Marina Cangussu F. Salomão

No exílio


Como posso descrever o instante de agora
E sinto o mundo em meus braços, sem peso
Ele passa tão lentamente...
O tempo longo que clamei ter
Tão lento quanto o balançar do vento
Na rede que me embala na sombra
E o silêncio de zumbidos poucos
Que permite sentir a água que cai nas pedras
E posso vê-la clara, brilhante
Com o mesmo sol que me brilha
Se escondendo detrás das minúsculas folhas
Incrível meu desejo de criança
Daqui vejo o joãozinho saltitar entre os galhos
E entrar cabreiro em sua casa
Ou vejo as borboletas: pretas e alaranjadas
Ou ouço pequenos gritos de pássaros
Como os da flauta que tocarei
São tão doces, tão diversos e tantos.
Como diziam os livros de minha infância
Que guardei na memória
Me deixe ficar aqui, só mais um tempo!

Marina Cangussu F. Salomão

Amada


Ela tem a quietude dos dias felizes
Com seu frio ameno
Olhado pela janela
E o silêncio: doce e calmo
De tantas montanhas
O verde estranhamente negro
Lembra sua herança
De anos passados
E segredos vividos
É linda, calma e plácida.

Marina Cangussu F. Salomão