segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Doce sonho queimado

Os transeuntes se apressavam através da bruma,
como se lhes fosse importante chegar 
um pouco mais cedo, aqui ou ali:
no fim, todos morrerão, e eu também [...]¹
Enquanto passava apressada,
Junto ao vento vinha um cheiro doce
Que entorpecia-lhe o estômago
Em fome e enjoos:
Era uma mistura de doce queimado
E suor de gente que não se vê
Que enojava em meio ao prazer
Estranhamente.
E ficou a pensar se todo aquele suor 
Exalante de correrias e insignificações
Bastaria-lhe para criar poucas palavras,
Se a pressa dos passos mudaria 
E altivaria algum instante,
Se aqueles pensamentos por si
Fariam alguma diferença.
Se, afinal, seus sonhos seriam capazes
De alterar toda aquela pressa
E tornar agradável aquele cheiro,
Mesmo em sua realização
Ou na concretude final.
Se seu sonho humanitário não era senão
A busca pela paz de sua própria consciência.
Se, afinal, na realidade, 
Os atos realmente importam
Ou são porosos como esponja
Que apenas absorve
E perde em si o que possui
Sem amplificar-se em significados.
Ou mesmo se estes significados 
Deixariam a significância
Para algo maior por vezes já tentado.


Marina Cangussu F. Salomão

¹Simone de Beauvoir in Os Mandarins

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sorvete

Eles voltaram a equilibrar-se nas cordas 
Por entre as árvores naquele dia de sol 
Com manhã chuvosa e verde de tanta primavera.
Então ela viu neles os que se importavam 
Com o momento inicial do bater do coração 
E não com seu momento final.
E foi quando percebeu o quanto se perdera 
Por entre os dias lindos anuviados 
Em sombra indistinta em seus olhos,
Na hora tão negros, confundindo-se com a pupila,
Sem perceber ao menos que seu coração batia.
Viu, naquele momento, também 
Que não precisava haver sentido 
No retirar-se em colheitas de trigo 
Para se entregar à arte em alma em ascensão, 
Pois não precisa haver utilidade para se ter o céu 
E ser supremo e grandioso como se diziam dever ser.
E viu naqueles meninos que para flutuar 
Não é preciso água, mas fé mais que Pedro 
No vagar alheio dentro de si.
E assim tocar o outro em ser social,
Com alma expandida e consciência 
De sua existência independente 
No saborear o gelado do sorvete.


Marina Cangussu F. Salomão

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O verão

As gotas rebatiam-se no vidro
E escorregavam carregando outras
Formando uma bem capaz de molhar.
Qual minha ilusão de eternidade
Que se desfazia conjunta ao amor
Dissolvido pela tentação de outros
Que por mais que o agarrasse
Escorregava lentamente de minhas mãos
Descendo pelas frestas deixadas
Propositalmente entre os dedos
Sendo capazes de cortar.
E como lavavam as janelas as gotas
Lavavam também minha insensatez
Desnudando-me com roupas céticas
E invariando minha confusão.


Marina Cangussu F. Salomão

As marionetes e o monstro

Envolta àquelas visões
Que rodeavam sua realidade
Palpável e visível
De destroços entre palavras
E incompreensíveis interpretações
Havia um pequeno monstro
Que tomava todos em controle
Impedindo-lhes de sentirem
Vivendo em assombrosa movimentação
Nunca pararam, nem choraram
Não pensaram ou analisaram
Apenas o estrondoso lhes acalmava
Em desfeches horrendos
De algum distante e louco
Mas em breves instantes
Logo fluidos e dissolvidos
O incabulado para ela, porém
Era o tamanho do pequeno monstro:
Não se afirmava se era ele
O maestro de todo frenesi
Ou eram as marionetes
Que penduravam suas cordas
Com medo de si admitirem
De se verem ao menos em reflexo
Em espelho turvo manchado de culpa
Pois assim não precisariam
Parar para sua vida
E entender a do outro.




Marina Cangussu F. Salomão

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Tua boca

Apenas daquela boca ressoaria
Os doces sussurros irmãos do vento
Que acariciam-me os cabelos


Somente dela se constroem
As desejadas promessas em dedilhos
Agigantando os prazeres e aconchegos


E dela viria o delicado tato em alteres
Que desconstrói toda efigie criada
E a coloca nua em pedestal


Nela, somente nela, curvando-se
Sem sequer encenação ou hipocrisia
Alteiam-se os pronomes nossos


E faz-me repleta em aspiração...


Marina Cangussu F. Salomão





quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Por entre o céu

Para Binhazinha


E se o sofrimento fosse composto de orquestra
Dançaria contigo toda a música
Suave em seu tom de labirintos que nos perde
E nos largos movimentos de rodopio
Dissiparíamos em longos sonetos,
Suavizados em flauta,
A falta disposta a ferir:
Transpô-la-íamos em sol
E transformada faríamos belo 
Seu doce desenlace em som
De cansaço e luta contra a saudade
Que seria descrita em notas
E toda voaria junto ao ruído do vento
Leve e solto
E seria linda musica por entre as nuvens
Onde habita nosso motivo.
Que no fundo é simples ser feliz
Difícil é ser tão simples¹


Marina Cangussu F. Salomão


¹Fernando Anitelli in Nas margens de mim

sábado, 15 de outubro de 2011

Facetas no retrato

Estava pensando naqueles rostos
E porque me intrigavam com tanta devoção,
Se punham em minha frente
E se desvendavam em segredo.
Por alguns poucos minutos
Enchiam-me, resolutos, de pensamentos
Transbordando a imaginação
Com poucos sonetos e algumas músicas.
Até quando tive coragem de questioná-los:
Tão mais misteriosos se tornavam
Se enfeitavam em si mesmos
Se falsificavam, se descreviam
Como não se pode descrever:
Sem o fato, sem o todo
Sem passado e ilusão.
Então, continuaram intrigantes
E me fizeram ainda mais arisca
Com curiosidade implena, inconstante
Em busca de sua deliciosa resolução.


Marina Cangussu F. Salomão

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Paçoquinha: cinquenta centavos

Ele caiu da cama.
Dormia como anjo,
Sem um anjo para protegê-lo,
No cimento duro e insensível
Com o sol quente na cara
Sem cara para mudá-lo
Os pés pretos sem banho
Cabelos e barba
E em seus sonhos possíveis
De um pouco de cada
Envolto em pesadelos
Rola de sua calçada
Caindo no outro chão


Paçoquinha: cinquenta centavos!


Ela na fila com poucas malas
Levava tudo o que era seu
Na espera do ônibus
Sentou-se no mesmo chão
Fedendo a água-esgoto que passava
Como fazer com os joelhos tão tortos
Quinze dias de trabalho 
Cinco filhos e nenhum marido?
O ônibus feroz chegava
Suas malas leves subiam
E o motorista impaciente
Seus joelhos tortos quebrariam


Paçoquinha: cinquenta centavos!


Ela varria aquele chão
Com roupa bizarra e colorida
O mínimo que fosse ganharia,
Mínimo ainda faria,
E junto da água suja e do lixo
Completava seus desejos
Com as bolinhas encontradas
Para o filho de poucos anos
E que importa se suja
Se havia luva, remédio e água
E que importa se nunca os teria!


Paçoquinha: cinquenta centavos!


Marina Cangussu F. Salomão

Chaboqueira

Haviam adjetivos que ela não entendia
E rodeavam-na em elogios soltos
Haviam alguns sorrisos e outros abraços
Haviam as falas e lugares
Que não lhe condiziam.
Mas quem lha disse assim tão delicada
Em bolhas doces e futuros claros
Resplandecendo do alto.
Ela era quieta no seu canto
E mau em julgamentos
Não tinha pais nobres
E alguns poucos contentamentos
Era meio bruta em palavras
Insensível em afetos.
Chaboqueira:
Qual bolo mal feito 
E mexido de fim de tarde.


Marina Cangussu F. Salomão

Um sentimento qualquer

Você estava sentado na mesa
À minha frente
Sem impedimento de visão
E em todas as suas rugas
Comia como criança
Não usava a faca
Derramava o macarrão
Olhava em volta ressabiado
Se percebiam seu desajeito
Disfarçava meu espanto
De três copos de suco
Esperando o momento de sua sede
Você trabalhava e era feliz
Vivia em ausências mas encorajado
De ser sem sombras em espelho.
De repente quis muito dar-lhe um abraço
Abraçaria e agradeceria
Por ser sincero e tão humilde:
Sei lá seu nome e onde vive
Sei lá o que rodeava-lhe a mente
Sei muito menos suas vergonhas
Sei apenas que estou ficando louca


Marina Cangussu F. Salomão

domingo, 9 de outubro de 2011

Lívido

A pouca luz que penetrava o vidro
Demarcava o relevo delicado e bem feito
Da mistura dos músculos entrelaçados
Em lembrança de Davi completo em sua amada
E bendito era o pequeno raio
Que lhes alcançava em pintura lívida
Enlanceando mais desejo e ternura
Em pouca fala e pouco som
Com frequência luminosa 
Reduzida comparada à do amor
E da frequência emanada pelos bons sussurros
Que unidos emperfeitavam o momento
De nudez de vestidos e vestidos de nudez.


Marina Cangussu F. Salomão

Cavernoso

Voavam em asas diferentes
Sustentada por outra ideia
E buscavam e construíam
Novas asas como aquela


Compartilhavam o ninho
E defendiam-o com delicadeza
Enfeitavam-se com iguais penas:
Todos frágeis, todos pensantes


Em seu mundo irrestrito
Voavam além do umbigo
E aterrissavam em tentativa
De tocar os outros


Não que se soubessem certos
Tão pouco santificados
Na verdade eram loucos
E viviam na mentira da grande luz


E morreriam por sua fé.


Marina Cangussu F. Salomão

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Ao mendigo desta manhã

Estavam todas as manhãs
Enrolados junto aos germes
Jogados em calçadas
E, parte do cenário, não os via
Não notava o frio que sentiam
Sabia-se que não deveria estar perto
Que eles bebiam e se sujavam
Mas nunca parara para ver
A alma que lhes rodeava
Pois internamente em fome
Havia secura e desespero
Impossível de habitação de almas
Que fieis a seus corpos
Permaneciam próximas
Lembrando-os de sua situação
E longe do idealismo burguês
Perfurados de descrença
Viam nossos bosques sem mais vida
E suas vidas com poucos amores.


Marina Cangussu F. Salomão

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A pipa

Soltava pipa com a desculpa de olhar o céu
E longe via as nuvens quebrando seu azul
E sussurrava seu último soneto para o dia
Aquele que forte despencava em chuva
Despencando junto seus sorrisos
Desmoronavam em felicidade de menino
Sem ser vã em brincadeiras pequeninas
Ao sentir toda a presença do valor
Era a presença de sol vivo a queimar-lhe
Aquecendo as vistas, chamando para a sensação
E em último soneto fantástico
Construiria seu sustento em fé e infância
Mesmo que ninguém entendesse!


Marina Cangussu F. Salomão

Só um barco

Da sala via a chuva lá fora
Batendo na janela a chamá-la
E batia insistentemente a cada pingo
Convidando para um banho sereno
Em gotas fortes a alcançar a pele
E junto de seu véu meio branco
Encharcaria-a de maciez e frio
Ao som do vento em flauta doce
Mesmo tremendo sentiria no tremor
A vivacidade habitar-lhe somente
E esqueceria naquele instante
A vida que deixara usurpar-lhe
Iludida ao som da água a tampar-lhe a vista
Acreditaria que perdera-se naquela que corria 
E apenas com um barco de folha seca
Poderia alcançá-la e revivê-la
Lívida, fresca e cantarola.


Marina Cangussu F. Salomão

sábado, 1 de outubro de 2011

Para minha amada

Há tanto tempo não sinto tuas pedras 
Frias e enevoadas tocar meus pés
Que vagueiam suaves em subidas
Por tuas ingrimes ladeiras
Há tanto tempo não dissolvo-me
Misturando a teus jardins,
Em verde escuro constante,
Penetrando como ramos pelas portas e janelas
A fim de inundar-te e sobrepujar-me
Envolta pelas poesias que ressoam de tuas paredes
Em grandes nomes e belas histórias
Há quanto tempo minha amada?
Se o futuro desfaz-me a ilusão de habitar-te
Em plenitude de confortos imaginados
E põe-me distante em horas falhas
Que não se veem e não controlam
Então, imagino-me velha e só
De mãos rugosas a equilibrar xícaras
Em frio e dores compensados
Pela quentura do chá,
A usar grafite em tuas mesas
Desenhando as letras que me inspira
A espreitar-te, finalmente!
E em inteligências passadas
Ponho-me a descrever-te
Em paixão cada vez mais cabal
Das ruas e becos que me encantam
E exasperam de desejo
De ser só em ti.




Marina Cangussu F. Salomão

Os príncipes

Desenham-se os novos protagonistas
Em cavalos ainda bem alvos
E tão distintos e interessantes
Que amedrontam-me em desenvoltura
E tomam-me em receio de escolhas.
Já os pensamentos em pecados
Invadem-me com cautelas amistosas
E o medo de envolver se faz forte.
Antes caminhava em pedras mal formadas
Com pés descalços em cenas de drama
Hoje de um só remontam-me alternativas
Que em meio à pouca dúvida
Me invadem em pensamentos oblíquos.
Quisera eu resistir em pés de afastamento
E fazer certa a escolha que fiz.


Marina Cangussu F. Salomão