segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Chapéu de camurça

Havia um senhor hoje, meio largado, meio jogado e completamente bêbado, entrando no supermercado. Estava bem vestido, mas mal apessoado.

Entrou dançando o corpo, não sei se pela música interna ou pelo álcool. Sorria para os que estavam na fila (lá estava eu).

Sorri de volta, porque achei interessante aquela cena: um bêbado bebum bem vestido em pleno Funcionários, em um supermercado de boa reputação.

Ele parou atrás de mim pegou qualquer coisa ao alcance da mão e disse: o que está escrito aí?

Ele lia a minha pele: "Agora és livre, se ainda recordas."

Parei, olhei em seus olhos e senti o cheiro de cigarro e álcool que vinha daquele rosto de sessenta e poucos anos com um chapéu de camurça de marca.

Depois de retribuir o olhar ele gargalhou discretamente. Virou para tras e repetiu a frase a outro cliente. Voltou-se para mim e disse: o presidente do Equador, um país da América do Sul, disse liberdade para tudo e para todos exceto para o mal e para os maus.

Gargalhando novamente continuou: ele morreu assassinado.

Nos enxergamos.

Fui chamada: próximo.
Despedi-me e pensei qual de nós era mais livre naquela ironia de vida: preso ao vício ou preso ao futuro.


Marina Cangussu F. Salomão


A janela do quarto beira-mar

A meia luz amarelada, 
Atravessando a greta da janela ao fugir da cortina, 
Ilumina minhas flores sem pétalas de meio de primavera
E me diz o quão aconchegante pode ser 
Deitar-se sola em uma tarde de chuva, 
Enquanto o mundo lá fora faz mil planos

Enquanto alguns viajam, outros trabalham 
E muitos preocupam-se com a própria imagem,
Eu me jogo na cama descabelada, 
Pensando no quão singelo esses momentos solitários me são:

Assim delicados e passivos, no seu deixar ir-se, 
Passando vagarosamente pelo infinito de sensações 
Que me acalma e me encontra

Me faz encontrar a mim mesma na essência de minhas cores 
E organização de meu quarto: 
Como meus livros na prateleira.

Então digo em pensamento: 
É chegada a solitária marina, 
Em suas miríades de pensamentos primaveris.


Marina Cangussu F. Salomão

Passagem

O tempo passa
Nas pessoas
Nas coisas
Nos lugares

Passa deixando cores
Brancos cinzas
E coloridos

Trocando nomes
Paredes 
Apelidos

Passa brilhando sorrisos
Amuando olhares
Mudando a vista

O tempo passa
Nas esquinas 
Nas casas
Nos amigos
Nos jovens adolescentes

Ele vem nas preocupações
Ele acalma futuros

O tempo vem
Manhoso
Calado

Brincando com histórias
Construindo memórias

Às vezes o tempo até volta

E minha avó diz:
Eu tenho muitas histórias para te contar, minha fia, são muitos anos.

Marina Cangussu F. Salomão

Consumação

Entrego-me a esse amor que me consome.
E consome, não em depravação,
Mas me acrescenta a cada pedaço que me leva.

O amor é assim para os amantes exacerbados
E nem ligo que seja excesso
Porque a vida nada tem além do dar-se

Então dou.
E adiciono.

Dou-me:
Cada segundo de minha vida à consumação
Entrego-me loucamente ao que me pedem.

E vivo cheia
De leveza.

Marina Cangussu F. Salomão