quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Formigueirar

Deixe-me livre para penetrar em meus pesares
E senti-los consumir-me como redemoinho em água plana
Invadindo meu afogamento apenas cético a olhar
Deixe-me cabisbaixa, deixe-me insossa
Que eu discorde ou que complete
Que exagere em tresloucadas dores e amores
Ensandeça as verborragias e cuspa em tua cara
Deixe que feche o rosto como criança 
Sem justificar-lhe em papel branco de mil linhas
Deixe que me derreta nesta quimera
Que morra ardendo em meio ao asfalto
Ou que fuja em desespero por passos curtos
Deixe-me sentir. Incendiar
Deixe-me formigueirar.

Marina Cangussu F. Salomão

Do retorno aos cheiros e vontades

Volta à infância sem presentes
E é capaz de sentir o cheiro impregnante
Da bolacha e do lápis
Que rolavam em outras mãos
Que não eram suas

(Come-os incansavelmente até abarrotar-se)

Invade-lhe as saudades, as meninices:
Relutara tanto por não abandoná-la
Que ao se ir foi completa
Restando a rispidez e a saudade
E agora invade-lhe a cura e a raiva:

Ah incompletude de outrora,
Por que invade-nos agora
Sem pedir para entrar
És tão doce e tão terna
Tão longe. Tão vaga
Que sobra apenas no fechar de olhos
De imaginação solta
E vai-se indo em tempo
Mas já nem tempo vê-se passar.


Marina Cangussu F. Salomão

Nas montanhas azuis

Eu ficaria estática, 
Arregalando-me 
Aos pequenos detalhes 
Que cobrem de tinta 
Os traços de cada desenho 
Que pinta o mundo passar lento,
Se estivesse ao meu lado

Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Os homens de boa ventura

Eram máquinas entorpecidas em sandice
Sem recobrarem os movimentos que lhes enchiam
Eram loucos e desdobrados. Rápidos
Eram bons: limitados.

Marina Cangussu F. Salomão

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

"Agora és livre se ainda recordas"

A vida pulsa em seu silêncio
Protegida da memória do instante
E deitada de olhos fechados
Posso ouvir apenas o som do vento
A flutuar-me na pequena vastidão de si

E sinto que a vida se expande:
Tudo é largo e vasto
Até as lágrimas podem vir tranquilas
Tal como o vento a acariciar-me

E no mais puro silêncio
Não me resta tentação de volta
Só o tempo e o vento e eu flutuante
Então ouço no profundo cochichar
A lembrança de ser livre e recordar


Marina Cangussu F. Salomão

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Peso das rodas ao girar

Ao mesmo tempo esperança e derrota
São estas rodas girando curvas no asfalto

E toda sua poeira memoria-me o que deixei
Junto do rumo que me convence do que tenho

Mas por tantas não supero o peso
E titubeio no sopro tênue de desabar-me
E retornar para meu colo

É tanto, tamanho este peso equilibrista
Que esqueço de ver o que passa
Para sofrer pelos que ainda planejam sair.

Marina Cangussu F. Salomão

domingo, 14 de outubro de 2012

Na noite de ir-me

Suporto o paginar de tempos
Colocá-lo sóbrio à minha frente
Suporto tê-lo ruidoso e sincero
Mas me aquebranto no calar solo
E silenciar diante os pensamentos
Que dizem nas palavras escritas outrora
O lápis que me desenha e contorna
Tão sórdido, tão só
E vejo os outros rumos e outros passos
Porque tão distantes aos olhos
Mas rodeantes me enlaçam
E me fitam bem aos olhos
E rasgam em tudo o que dizem

Marina Cangussu F. Salomão

Caminho dos meus pés

Novamente meus pés aspiram o avesso
E se trocam e tropeçam
Nos passos idos e vindos 
Adestinados em seus desejos
E teimam em voltar
Outros teimam em ficar
Sabem apenas seu contrário
E seu trocado
Mas o querer é pouco
Nada além de ser um passo só
Em sua direção


Marina Cangussu F. Salomão


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Minha idade

Tenho a idade da alma
Que leve rodopia
No sopro de ventos
E se deixa ir indo
Inocentemente
Em sua pouca forma
Aonde lhe cabe ir
Entre músicas e cantos
Nas vozes e nos discursos

Tenho a idade do som
Que mexe o vento
Em esmagadores
E soltos
E estou em sua rarefação
Sendo ar pouco
E com espaço
E me expando
Onde tiver que crescer

Tenho a idade de uma ave
Que descobriu que voa
E se joga lentamente
Em qualquer possibilidade
De vou e vai voando
Linda todo seu céu


Marina Cangussu F. Salomão

Passarinho

Passarinho solto
Andorinha canta

Passarinho, ri
Andorinha lenta

Nada é permanente
No mundo das cotovias

Marina Cangussu F. Salomão

Futuro dos frutos

Fomos fortes em demasiado 
Nesse mundo de fraqueza.
Derrotamos muitos passos.
Não paramos, nem sonhamos,
Lutamos apenas.
E a briga nos deixou marca de ferida
E nenhuma vitória.

Não é capaz de perceber 
O que faz a seus filhos?
Sufocando-os em lama
Mais podre que a sua?
Liberte-nos, somente
Para sermos aquilo 
Que nos resta de aves.

Marina Cangussu F. Salomão

Por sobre as árvores

São nesses momentos em que contemplas
Que podes ouvir todos os sons do mundo
Falando de todas as formas ao teu ouvido
Deitado vagaroso na sombra da vazia árvore de outono.
E vês nos olhos fechados todos os passos que te passam
O vento nas folhas e quantos rodopios deram para chegar ao chão
E quantos deram por sobre ele
Sentes a doce e delicada raridade a borboleta
Pousando no mais feio dedo de teu pé
E vês com olhos bem abertos o menino humilhado
As meninas coloridas e os que não se importam
Vês a todos a poucos deles te veem
Mas basta-te as borboletas e as formigas.

Marina Cangussu F. Salomão 

Cinza

Plantei flores em minha janela
Para disfarçar meu cinza:
Aquele que fica do outro lado
Olhando-me todo o dia

E finjo que estou em casa
Abro-a para tocar-me o vento
Mas já nem tenho penas
E as asas são apenas braços

Sentei.
Não poderia voar
Mas chorar a extinção de mim

Marina Cangussu F. Salomão


Desamparada

Curam, mas não libertam
Porque não têm voz 
Presa ao papel
De onde nunca saíram.
E fica imóveis como meus pés
No mesmo chão que a plantaram
Gritando mudas seus desespero
Seu horror ao mundo e a seus olhos.
Gritam: merecendo ao menos um ruído

Marina Cangussu F. Salomão

Paragem dos pensamentos

Como dois tempos que se cruzam
Num rodopio voraz e efêmero
Giro que vem no vento
Rasgando e tecendo
Costurando os dois pontos
Em uma só colcha
Que se chama gente.

Marina Cangussu F. Salomão

Olhos claros

Estes olhos que não estão em qualquer lugar
Se escondem e se negam
Temem a admiração
Estes que estão abafados e calados
Em toda sua gesticulação e dança de cílios
Eles que rodopiam incessantemente
Porque guardaram sua fala
E não conseguem gritar

Marina Cangussu F. Salomão

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Àquela que me pariu

Posso ter todas as raivas do mundo
Posso culpar-te por tudo
Mas não desperceberei
Que me olhas e me cuidas
Discretamente de teu castelo da grades cinzas
E felicita-se porque fugi.

Marina Cangussu F. Salomão