terça-feira, 8 de agosto de 2017

Notas

Como alguém por um minuto sequer
Como alguém consciente da vida e do que ela quer
Como um ser humano, esperto, acordado e completo
Pode algum dia aceita-lo sem ser repleto?
A esse homem tão profundo e tão intenso
Como podem permitir que nele não aprofundassem
Não o desvendassem, nem o amassem?
Como podem nunca tê-lo descrito
Nunca tê-lo transcrito
E criptografado?

Marina Cangussu F. Salomão

Viagem: Porto Velho-Manaus

14-06-2017
17:00
O Redário

O barco finalmente deixou o porto após pelo menos 3 horas de atraso, se considerarmos todas as possibilidades de horários de saída ditas pelos tripulantes: 12h, 13h, 14h, 15h.
Por um momento acreditou-se que o horário seria 20h. Então talvez saímos com 3 horas de antecedência.
Assim que o barco partiu, as redes pesaram e se aquietaram no balançar lento do movimento da água. As pessoas, calmas agora, se calavam nos pensamentos de adeus ou ansiosos de chegada. E se esqueciam de todas as confusões daquela tarde de carregamento:
As faxineiras que não queriam salário do patrão que insistiam em pagá-las; o carregador paulistano que decidiu estudar; a mãe com filho pequeno que não pagou a passagem e foi expulsa do barco com pertences lançados à terra; ou mesmo o filho adulto que trouxe maçã para a mãe viúva que foi viajar; ou o gato sorrateiro, mais manso que cachorro, que entrou no barco e decidiu ir de Porto Velho a Manaus, como todos nós.
Muitas histórias nesse galpão colorido de redes penduradas, que agora reluzia com o reflexo da água do rio pondo o sol. Causando o mesmo efeito de pôr-nos em nosso lugar.

15-06-2017
7:00
Primeira Noite
Anoiteceu e alguns foram para a proa ver o céu sem lua, que só chega mais tarde.
E o infinito de estrelas era tão largo, perdido naquele rio cumprido de margens distantes, que no pretume da noite não se via nem o rastro das árvores florestadas.
E nunca vi tanta estrela - nem quando perdida na roça na época que não tínhamos rede elétrica.
Cruzeiro do Sul, Via Láctea, Escorpião, estrela-planeta no Zênite.
Preto. Tudo preto e as estrelas.
...
Dormimos nas redes atravessadas. Um frio de vento de água.
Enviesado: as redes com gentes em cima e o frio do equador.
Mas o amanhecer, que começa cedo, antes mesmo do sol, junto de cantos de pássaros que não sei, nada traz de viés.
É lindo: como divino, como privilégio.
É númen: só quem vê o sol nascendo redondo alaranjado por trás da floresta, que nos olhos é sombra, brilhando o espelho d'água manso, voando no céu cor de arco-íris algumas araras.. Só quem vê sabe.
E fica-se ali horas orando à vida. Pacificado. Admirado. Exaltado.
Até tocar o sino do pão da manhã.

16:00
Meditação
O vento da tarde de sol alto de nuvens, quando sentados na proa, leva até os pensamentos: que vêm e vão, vêm e vão. Sem se fixar. Sem nem mesmo falar em voz alta um com o outro.

18:00 
Maria de Lourdes
Hoje foi dia de conhecer a Maria de Lourdes, senhora da rede do lado da minha, parceira no vigiar das malas que ficam expostas jogadas no chão.
Cearense, 66 anos, mora em Porto Velho há quase 60 anos, sobe e desce esse rio sozinha pelo menos duas vezes ao ano para visitar a família em Manaus.
Vai sozinha com seu discurso anti-machismo, pro-erotismo e mulher independente não muito frequente em sua coorte.
Maria de Lourdes nasceu em família de senhor de engenho, na caatinga do Ceará, com fartura, muitos vassalos e muitos bois.
Entretanto, veio seca ano atrás de ano: os animais morrendo, o dinheiro sumindo, a riqueza do avô já não mantinha todas as coisas.
Seu pai e sua mãe, então, juntaram os quatro filhos (ela, a mais velha, completava 6 anos na época) e rumaram para Fortaleza, onde havia mais promessa.
Era por volta de 1957-58 e a seca da época não perdoava. A família se viu perdida: sem dinheiro para a volta, sem comunicação, sem ter para onde ir: moraram por seis meses debaixo de lona, para não ficar no sereno. Nessa época, Lourdinha completava 7 anos.
Até que três navios da Marinha, parece que encomendados pelo governo, levaram todas aquelas famílias para povoar o norte do país.
Foram sete dias de duração a primeira viagem de barco de Maria de Lourdes.
Foram para trabalhar no seringal, juntar dinheiro e talvez voltar para casa. Mas a mãe deles era bonita demais para viver no meio de cabras seringueiros, o pai morreria fácil brigando pela mulher.
Foi quando decidiram ficar em Rondônia e foram para uma colônia para produzir de tudo: abacaxi, macaxeira, girimum.
Então foi aí que cresceu a menina feliz e inocente, que aos 16 anos não conhecia o amor e por isso aceitou o marido que a mãe arranjou.
Casou-se Maria de Lourdes e aprendeu a amá-lo só depois, 
pois nos oito primeiros anos de casamento, quando tiveram os três filhos, seu Antônio só sabia gastar dinheiro com jogo e mulheres, e a Lourdes tinha que pedir permissão para tudo que fazia ou comprava.
Porém, de repente, seu Antônio se viu com mais de 20 mil reais de dívida e desesperado pediu à esposa que colocasse tudo em seu nome. Lourdes, esperta com a vida, aceitou com a condição da empresa de tecelagem estar em seu nome e o dinheiro em sua mão.
E foi assim que mantiveram a empresa, criaram os filhos e construíram casas e apartamentos para alugar.
Lourdes diz: nosso casamento só não acabou porque eu administrei junto. E, menina, mulher tem que ser esperta: a gente não precisa de homem não, construímos tudo sem eles. Então, se não querem ser parceiros, nem adianta: homem e mulher que trabalha fora chegam em casa e dividem o trabalho, não tem isso de homem ir deitar e mulher arrumar a casa. E tem mais, se os dois ganham seu salário, cada um tem sua conta no banco, pagam juntos e se sobrar cada um guarda seu dinheirinho.
Há poucos anos seu Antônio morreu, com os filhos já crescidos, Maria de Lourdes se aposentou e foi viajar, subindo e  descendo rio.

19:30
Consertar
Estávamos eu e o Lucas sentados na proa amando o céu, o rio, a viagem. Amando-nos em silêncio, admirando-nos e à vida.
Quando se aproximou p moço simpático que na noite anterior o Lucas ensinou a ver as constelações.
Veio conversando sobre sua mudança para Manaus: disse que veio do Acre, onde tinha uma fábrica de salgados, apartamentos para alugar e uma fazendo. Vivia bem com a esposa, fazendo dinheiro. Mas não tinha tempo de admirar toda aquela beleza da natureza de Deus, tão imensa e perfeita.
Então decidiram vender a terra, fechar a fábrica de 18 funcionários e seguir para Manaus, produzir e vender salgados, só os dois. E então poder viver, como disse: até ganhar dinheiro, mas também gastar.
Escorpião, como o chamamos agora, com seu ar contente perguntou de nós: se noivos ou casado (eles nunca dão opção de namorados).
Eu, pensando na maneira como falava de Deus o defini tradicional e resumi explicações e possíveis ofensas com: casados.
O Lucas sendo sincero: namorados, mas moramos juntos.
Respondemos ao mesmo tempo, por isso, ele olhou confuso e disse: vocês já estão juntos, só precisam se consertar.
Eu pensei: estamos errados?

16-06-2017
3:30
Cidades
O barco parou em Manicoré. Só soube os de sono leve que acordam com a luz fraca da noite do barco.
Alguns passageiros devem ter embarcado, não sei. Eu, ainda obnubilada, só pensava nas mochilas debaixo da rede, raspando na bunda, como forma de proteger.
Na cidade anterior, às 10 da noite, já todos dormiam, pois aqui tudo se apaga às 8 da noite, o barco não parou. Vieram de lancha até o mais próximo do primeiro andar e dali foram passando gentes por gentes, na aventura de quase cair na água escura e não mais se achar.
Mas entraram, penduraram suas redes e algumas talhas sumiram.
Não sei, não vi. só ouvi falar.

8:40
Vida Cotidiana
Completando o segundo dia de barco vejo que a vida aqui é uma Vida, à parte, mas completa.
O Argentino Artesão trabalha e aproveita para vender suas bolsas e pulseiras aos curiosos que ficam à sua volta.
As crianças brincam de pique-pega, caem, choram, rolam da rede, fazem cocô de porta aberta.
As senhoras oram todos os dias as rezas cantadas, unidas e animadas. Depois pegam a prioridade na fila da comida e comem dois/três pratos.
No bar do andar de cima toca Pablo, Juan, Maraísa, o brega que for, enquanto as faxineiras em sua hora de descanso seduzem os homens com seu dançar latino em troca de cerveja. Algumas já até formaram pares que beijam na boca.
Nas cordas de pendurar vieram as toalhas e agora as blusas, vestidos e bermudas lavados na pia do banheiro.
Os tripulantes já sabem de tudo de minha vida, mesmo ficando muda, e me cumprimentam como velhos amigos.

9:45
Cães Navegantes
O barco leva passageiros, mas também, e principalmente, carga: melancia, batata, banana, carro, peças variadas.
À hora do almoço - sim, o almoço é servido antes das 10, porém como o café-da-manhã é entre 5 e 6, às 10horas todos estamos com fome. Bem, à hora da primeira fila do almoço se formar, chegaram barcos para pegar mercadoria.
E em um deles duas cadelas: uma amarela (Loirinha) e uma rajada (Rajada).
Elas, mais do que toda a festa de tripulantes no move e remexe de peças e mercadorias, assistidos pelos famintos da fila, chamavam a atenção.
A cada cilindro carregado por 3 ou 4 homens fortes colocado no barco, elas atravessavam o "túnel" por cima e por baixo. Pulavam de barco em barco e fuçavam tudo. Sempre logo atrás do homem de costas carregando peso, prestes a tropeçar e cair. Verificavam cada mercadoria recebida.
E à hora de partir, ambas cadelas, sem prévio aviso, estavam a seus postos, de volta para casa.

17-06-2017
8:30
O Rio
Encontramos o Amazonas.
Não há descrição para esse momento de tamanha mágica: encontrar-se com a mãe da vida em seuas demonstrações de maior poder sutil e amoroso: o maior rio do mundo e toda sua intensidade.

15:00
Boca do Eva
O rio Amazonas é famoso por seus meandros. E cá estamos nós na Boca do Eva.
As margens se aproximam, bem como a floresta e o pasto (sim: pasto). 
Do barco ouve-se os pássaros ouriçados beliscando búfalos, enquanto a água invade a terra a ponto  de algumas árvores ver-se somente os galhos mais altos.
E de repente apresentam-se às vistas tantas casas com suas placas de bem-vindo com Bem-Vindo à Fazendo São Pedro, ou Iracema, ou qualquer outro nome.
Primeiro as portas e janelas fechadas, casas mais espaçadas, parece que abandonadas.
Depois ficam tão frequentes alteadas por palafitas que já se vê crianças, mulheres, homens, casais. Igreja, claro, para todo lado.
Tudo alagado e com vida.


Marina Cangussu F. Salomão

Tardes

Ao entardecer nessa cidadezinha escondida,
Descem todos os moradores felizes para a praça.
Os que acham que são maduros: jogam bola na areia e na quadra.
Os que aprenderam a andar: rodam e giram com suas bicicletas.
E os vividos fazem caminhadas em círculos com atenção.
Alguns poucos, como eu, apenas sentam nos bancos e admiram.

É gostoso o dia da vida: pessoas satisfeitas se acalmando
A grama feliz por ser usada
Os postes se acendendo à medida que o sol esfria
E no céu as nuvens fazem redemoinhos rosa azul e amarelo
Que trazem justamente a felicidade.

E tudo se tranquiliza e se delicia:
O paciente dessa manhã, ou a criança da tarde
Todos os meus pensamentos suavizam.

No céu começam a surgir as primeiras estrelas
E no chão elas piscam:
Os vaga-lumes brilhando de amor compartilhado
Junto de crianças que tentam desvendá-los.

Monte Negro - RO - BR
21/05/2017

Marina Cangussu F. Salomão

Caderno de notas

Tanta história vem de um caderno de notas
Que não sei se susto, saudade ou dor ao abri-lo
Mais parece um filme rápido de vários eus
Mais tenebroso que as próprias memórias
E também muito mais amor

Ah essa vida de poucos círculos e tantas voltas
Estranha aos que apetecem com repetição
Nunca quis eu ter parado na primeira curva
Porque sou antes uma mulher de malas curtas e bagagem grande
Levo é dentro de mim, sem muito cadeado
No máximo alguns cadernos.

Marina Cangussu F. Salomão