quarta-feira, 16 de novembro de 2011

As batatas

Corria apressada, fugindo para o outro lado, na ânsia de proteger-se deles. Até ouvir aquele estrondo e ir ao chão seco e quente, sujo do fim do dia. E no esforço de mover sequer músculo envolto em dor que penetrava-a agudamente, expandindo seus limites ao tomar-lhe, desejava imensamente que os outros chegassem logo, na esperança incrédula de que viriam.
E eles chegariam antes que as outras pontadas lhe retirasse o último instante de consciência de seu tempo.
Eles já deveriam ter chegado guiados pelo som treinado... Deveriam mas nunca vinham, enquanto as pontadas de protesto começavam a rasgar-lhe a carne.
Sim, o som já lhes era corriqueiro e ela era nada além de mais uma manifestação de desprezo. 
Mas ela não era igual. Ela era ela, afinal!
E isto lhe fazia toda diferença: doía nela agora e importava a ela a última chance de permanecer no triunfo de cada respiração. E junto permanecer sentindo, planejando... E construir o que desejara - e desejara muito, quisera fazer a diferença e sentir-se diferente!
Porém, agora, jogada em meio a tanto sangue, percebia que quaisquer dos anteriores menosprezados também haviam planejado. Que também teriam mudado. Que quem morre também sonha!
Mas por descobrir isso deveria ser a escolhida para voltar e avisá-los que não estão protegidos em seus sonhos, que nunca estariam salvos.
Porém a alternativa também não vinha nunca em anjos de brilho e branco dar-lhe a honra de ser a escolhida. E sem a sua própria salvação, em morte pouco nobre, sentia aquecer-lhe a cara amassada no asfalto quente, não sabia de sol ou sangue. 
E já escuro, em noite nova, esqueceu dos revoltos a brincarem com seu corpo, quase novamente pó. E sentiu que a ele voltaria (mas não para onde deveria voltar). Seu pó constituiria aquele solo podre em que estirava-se, tão nojento que há tanto detestara. 
Terra infértil, que agora a recebia com sorriso inóspito e um canto irônico.
A primeira vez que a vira, também em asfalto de muitos carros em noite média - já sem luz, mas não imaginava sem vida - em corredor de paredes de papel e enfeite de algumas sucatas, formando o que chamavam de casas com quintal repleto de ratos criados. Matados no almoço, com água igualmente suja. E diziam que lá moravam vidas de gentes.
Gentes que se rebelariam e apareceriam nas manchetes: "Estudante morta em plena rua".


Marina Cangussu F. Salomão


Um comentário:

  1. OMG, MARINA!!!!

    ''Mas por descobrir isso deveria ser a escolhida para voltar e avisá-los que não estão protegidos em seus sonhos, que nunca estariam salvos.''

    Você retorce meu coração!

    ResponderExcluir